Um milhão de pessoas morreram onde ele também deveria ter morrido. Mas o jovem químico italiano Primo Levi sobreviveu, voltou para Turim onde nasceu e fora preso, ao mesmo emprego numa fábrica de tintas (e lá se aposentou), namorou e casou-se com Lucia, teve um casal de filhos, e retomou a pacata vida burguesa que teve até os 23 anos de idade, quando foi deportado para Auschwitz.
Venceu lembranças atrozes e escreveu um livro sobre elas. Lançado em 1947, “É isto um homem?”, seu relato sobre Auschwitz, hoje considerado uma obra-prima, foi escrito “sem intenção literária clara”, ele dizia, mas pela “vontade imensa de compreender”, como um “naturalista que se vê lançado num ambiente monstruoso porém novo, monstruosamente novo” e decidido a “nunca esquecer”.
É um livro para ler e reler em tempos sombrios como estes que atravessamos. Mostra que o ruim pode se tornar pior, que o abominável, o inimaginável, não tem limites. O espanto e o fascínio da obra de Levi está menos no horror visto e narrado, do que em seu tom sereno, sem amargura, ódio, nem autocomiseração. Que nos coloca na mesma posição de perplexidade vivida por Levi. Perplexidade que significa: eu não me acostumo, eu não aceito, eu não me tornei cínico.
Mais espantoso ainda: o livro mostra que nós, humanos, somos capazes de sobreviver a tudo aquilo e recomeçar, mesmo após tantos horrores.
O prisioneiro número 174517 morreu exatamente quarenta anos depois da publicação de “É isto um homem?”, ao tombar da escada do prédio onde nasceu e viveu sua vida inteira, exceto pelo ano que passou em Auschwitz e nos poucos meses após sua libertação.
Edney Silvestre é jornalista, roteirista e autor de VIDAS PROVISÓRIAS (Intrínseca), SE EU FECHAR OS OLHOS AGORA e O ÚLTIMO DIA DA INOCÊNCIA (Record), entre outros romances e livros de contos e crônicas.