Trecho do romance inédito COMO INVENTAR UM AVÔ.
Por Miguel Sanches Neto
Carmen viera andando, com sua mala leve das poucas roupas que prestavam. Haviam combinado um encontro na casa de Florentino Francisco Freitas, com quem trabalharam na fazenda, agora morando na vila, onde arrumara emprego, ganhando menos, sem a possibilidade de enriquecer com a alta do café ou com uma grande produção – era a coincidência destes dois fatores que todos esperavam naqueles anos. Os amigos já não aguardavam esta loteria rural, queriam estudar os filhos, para que não fossem brutos como os pais, que apenas sabiam ler e escrever.
Quando chegou, o sapato masculino coberto de poeira, o vestido com as barras salpicadas de carrapicho, pois se escondia no meio do mato ao ouvir algum barulho na estrada, a jovem sentiu muita alegria e também tristeza. Estavam num começo de vida, mas contavam com tão pouco.
Era fim de tarde, precisava se arrumar. A mulher lhe preparara um banho de tina, com água quente, tal como havia aprendido com os japoneses, esmigalhando flores. Quando entrou na água sabia que deixava para trás a infância, a adolescência e também a juventude. Principiava outra fase de seu corpo, por onde passariam o amor e os filhos, coisas que lhe eram totalmente estranhas. Carmen não se entusiasmou. Não fora educada para a alegria. Apenas para resistir. A água não estava muito quente e logo esfriaria de uma vez, mas continuaria imersa mais tempo do que o necessário para se lavar, sentindo, naquele quarto escuro, sem frestas na madeira, a presença de seu corpo nu, o que também era uma novidade. Acostumara-se a um corpo sempre coberto, amortecido pelas roupas de trabalho ou de penitência. E agora ele seria o centro de seus dias, pelo menos no começo do casamento.
Assim que saiu, secou-se com cuidado, torcendo os cabelos compridos e negros, depois colocou uma combinação de pano fino, presente da anfitriã – suas combinações eram de tecidos rústicos –, e o vestido que sempre usava na missa. Antônio já a havia visto repetidamente com aquela mesma roupa, mas agora seria como se pela primeira vez, pois o modelo cobriria a sua noiva, no noivado rápido, de poucos minutos, o noivado mais rápido do mundo, ela pensou, até o noivo a levar da casa do amigo ao cartório. Daí para frente, seria a esposa. Havia fugido e agora queriam oficializar quanto antes a transgressão.
Ganhou também um par de sandálias, que calçou de forma contrariada. Gostaria de ir com os seus sapatos de trabalhadora. De moça temente a Deus. Mas era o seu casamento. E o pente que fez correr nos cabelos, alisando-os, lhe dizia que era enfim uma mulher vaidosa. Foi para o quintal com uma toalha sobre os ombros e se sentou numa cadeira no sol inofensivo da tarde, penteando-se, até que a cabeleira secasse, assentada ordeiramente, ainda com o cheiro das flores maceradas na água.
A amiga a ajudou a se trocar, tudo lentamente, os noivos só se encontrariam às 5 da tarde. Quando Antônio chegou, Carmen se sentia meio ridícula naquele papel, e talvez por isso ele nem tenha tocado nela. Nunca haviam se aproximado. Nem mesmo se falado. Ela descobriu a sua voz levemente fanhosa. Ele perguntou se alguém sabia do acontecido. Em minha casa não, ela respondeu. Só avisei a Marina, ele disse. E o casamento quase em segredo estava assim se fazendo.
Seguiram a pé para o cartório. Ele vestira um de seus paletós claros, com uma gravata preta, fina, e usava botinas de elástico, novas e reluzentes, que rangiam enquanto caminhava. As testemunhas iam ao lado do casal. E a distância curta se fez extensa. Entre a casa dos Freitas e o cartório ela mudaria a história de seu corpo, aprenderia a ter ao seu lado alguém, nem que fosse somente na hora de dormir. Ela deixava um país e entrava em outro, ignorando o que a esperava.
No cartório, encontraram a testemunha da noiva, Fidelis Antunes, solteiro. E dois amigos de Antônio, Alexandre Ganzella e Raphael Orsi, que assinaram por eles. O que sentiu? Como se um casal de homens se casasse no lugar deles. Ficaram ali, ao lado do cartorário, ouvindo a conversa com seus representantes. Deram os nomes, as datas de nascimento, a dela sairia errada, as poucas informações. Depois, quem assinou o grande livro foram Alexandre e Raphael. Não houve maiores carinhos entre os noivos. Antônio segurou sua mão suada. A dele estava quente, o sangue latejava no corpo do agora seu marido. Tudo tão estranho. Em pouco tempo, ele passou de vizinho a noivo e de noivo a marido. Ela não sabia que alguns anos depois seria para sempre o finado, porque tudo tinha que ser brusco.
Ao saírem do cartório, podiam ir para onde quisessem. O pequeno delito da fuga fora corrigido pelo casamento. Não apresentavam perigo à cidade. Estavam juntos de forma oficial, embora ainda não estivessem estado juntos. Para onde iriam? Não haviam combinado nada para depois. Só o que fariam até aquele ponto. Daí para frente começava o futuro. Talvez ela tenha sonhado pegar um trem para São Paulo. Sairiam apenas os dois em busca de uma pensão e de emprego. Carmen poderia servir na casa de alguém, cuidar de crianças, trabalhar em restaurante. Sonhou com isso? Ou pensou em algo mais simples, dormir umas noites num hotel em Matão até que arranjassem tudo com calma? Ela esperava a casinha, os móveis que o marido faria. Não tinham nada por enquanto.
Do cartório, seguiram direto para um armazém na rua do Comércio, onde havia mesas. O grupo de cinco homens e duas mulheres se acomodou e o esposo – que palavra tenebrosa – pediu cerveja para todos. Carmen nunca tinha se sentado numa mesa assim, num lugar que parecia mais um bar. E não aprovou comemorar o casamento dessa forma. Parecia uma dessas mulheres… Mas não teve coragem nem de terminar a frase. Enfezada, não tocou em seu copo. A amiga bebia. Os dois amigos também. E ela sentiu sobre o seu ombro o braço do marido. Afastou-se, com cuidado. Não era de intimidades, ainda mais em público, na frente de toda esta gente. O que ele estava pensando dela? Pediram mais cerveja e linguiça frita. Ela comeu umas rodelas, muito salgadas. Teve que experimentar a cerveja, e não achou ruim. Bebeu o primeiro copo, depois outro. Não tinha coragem de perguntar para onde iriam. O marido – era estranho pensar nele como marido – devia ter providenciado tudo. A noite no hotel ou na casa dos amigos, depois a vida a dois. Será que ele fabricava cômodas? Gostaria de ter uma para organizar as roupas em três gavetões. Uma gaveta para ele, a de cima, depois a dela, e por fim aquela em que ficariam tolhas, fronhas e lençóis. Tudo branco, alvejado.
Quando se levantaram, ela não tinha percebido que o tempo passara e já se fazia escuro. Assim que ficou em pé, sentiu tudo rodar. Isso era ficar bêbada? E pela primeira vez naquele dia sorriu. Seguindo ao lado do marido, escorava-se perigosamente nele. O outro casal andava na frente. Ela não falava, concentrada em manter o equilíbrio. No meio da semiescuridão, descobriu um ponto luminoso, de onde vinha uma música alta. Estavam indo para lá.
Os músicos tocavam com vontade, ouvia os instrumentos como se eles estivessem ao redor dela. A noite era toda de sons em harmonia. Não sabia qual música executavam, desconhecia como nascem aqueles acordes, mas sentia as vibrações em seu entorno, criando ondas que a envolvem, e tudo era tão intenso que ela se julgava levitando, como os santos. Os seus pés se desprenderam. Devia ser isso a dança. A música nos tirava o peso, roubando-nos de nosso corpo para nos elevar, exigindo que tudo rodopiasse.
Nunca poderia imaginar que em seu casamento haveria uma festa com tantos músicos. Onde Antônio arranjara dinheiro? Deviam ser amigos do marido. Não, ela não iria para o meio daquela comemoração. Não sabia dançar. Mas era preciso saber dançar quando nossos pés já se descolaram do chão? Já não estamos dançando? Não é esta leveza a forma mais feliz de diversão? Ela não queria, mas todos iam para aquele centro.
Mulheres e homens bem vestidos circundavam os músicos. Tantas lanternas acesas, para quê? Crianças corriam entre adultos. Quantas pessoas vieram para o seu casamento? Não havia fugido, escondida dos parentes? Eram muitas perguntas. E a música ia envolvendo a esposa, atraindo seu corpo. Ela se segurou com mais força ao marido. Marido. Marido. Marido. Repetiu três vezes a palavra para que se acostumasse. Tudo tão novo e perigoso. Poderia perder o dom de flutuar e cair, machucando-se e sujando a roupa, a roupa de missa, que serviu para o casamento e agora servia para a festa.
Pararam na frente do coreto, onde tudo era diversão. Ela foi ficando cada vez mais próxima da terra, o seu braço, antes estendido como uma borracha, voltara ao tamanho normal, deixando-a ali, ao lado do esposo.
– O que estão comemorando? – Antônio perguntou a Florentino.
– Nada. Uma competição. Cada banda apresenta a sua melhor música.
– Essa gente não trabalha amanhã?
– É o trabalho deles – o outro respondeu.
Diante desta palavra, eles começaram a caminhar rumo à escuridão que, depois daquela luz povoada pela música, era mais espessa. Os homens falavam de uma roça de arroz, plantada entre as fileiras de café. Carmen se soltou do marido, abaixando-se para tirar uma pedra que entrara na sandália. Sentiu que seus pés estavam suados e sujos de poeira. Eles se despediram na esquina, onde ficara o cavalo de Antônio.
Na garupa, sentada de lado, com a mala no colo, ela voltou à colônia no meio da noite. Não se afastara da antiga vida. Avançando apenas umas casas, desceu onde a família de marido morava. Entraram sem trocar uma palavra, tal como em todo o trajeto. Ele acendeu a lamparina no seu quarto de solteiro, que tinha uma porta independente do resto da construção, dando para a varanda. A cama estreita era a única mobília. Ele tirou mecanicamente a roupa e pendurou em um dos pregos na parede.
Um grilo arranhava o silêncio da noite.
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Miguel Sanches Neto é autor de uma vasta obra que inclui os romances A BÍBLIA DO CHE e A MÁQUINA DE MADEIRA (Companhia das Letras), UM AMOR ANARQUISTA e CHOVE SOBRE MINHA INFÂNCIA (Record), e também Reitor da Universidade Estadual de Ponta Grossa, no Paraná.