O VERDADEIRO CIDADÃO DE BEM

Maurício Gomyde acaba de escrever um romance sobre quem é cidadão de bem no Brasil de hoje, um tipo bastante comum para toda gente em suas várias linhagens. Um romance sobre racismo, homofobia e violência na atualidade brasileira. Diga-se que a origem dessa expressão nada tinha de ambígua ou enganosa, quando começou a ser usada ainda nos tempos do Brasil-Colônia: vem de cidadão de bens, ricos, portanto, ou ao menos não desvalidos. Nunca significou “gente boa”. Vale ler o que Maurício –  autor dos romances SURPREENDENTE! (Intrínseca), TODO O TEMPO DO MUNDO (Astral Cultural), A MÁQUINA DE CONTAR HISTÓRIAS (Novo Conceito) e O CIDADÃO DE BEM, este ainda inédito – tem a dizer sobre sua literatura, sobre a experiência de ser traduzido e lido em diferentes idiomas e sobre a política no Brasil de hoje.

VB&M: Você costuma dizer que seu público é formado por leitores de 18 a 80 anos. Por que acha que é assim?

MG: Considero que essa percepção me vem muito mais por experimentação do que por premeditação, em razão dos feedbacks que recebo. Quando estou contando as histórias, não penso especificamente em quem vai ler. As interações nas minhas mídias sociais vêm de leitores jovens e velhos, em proporções muito parecidas. Talvez em razão das abordagens das tramas. Por exemplo, o AINDA NÃO TE DISSE NADA trata de uma jovem brasileira que se apaixona por um senhor que está num asilo em Portugal. É um romance epistolar, que tanto agradou aos que trocaram cartas por muitos anos, quanto aos jovens que mal conhecem esse universo. Em SURPREENDENTE!, há quatro jovens protagonistas. TODO O TEMPO DO MUNDO é um romance quase impossível entre dois adultos. Já A MÁQUINA DE CONTAR HISTÓRIAS aborda a relação de um pai com suas filhas. Por fim, o novo livro, O CIDADÃO DE BEM, tem nove pontos de vista, com diferentes idades e classes sociais. Gosto de ampliar as possibilidades e ter essa liberdade de escrever para vários públicos.

VB&M: Seus romances foram publicados em Portugal, Espanha, Alemanha, Itália e Lituânia. Como foi a experiência de ver sua obra traduzida e por que suas histórias têm tanto potencial de “viajar”, como dizemos no jargão do mercado editorial?

MG: Eu diria que é uma experiência surreal. Diversas vezes já me peguei folheando as edições traduzidas e me beliscando. Sempre surgem resenhas em outros idiomas nas mídias sociais, e imaginar que minhas histórias impactam leitores de várias partes do mundo é muito gratificante. Mas o mais bacana é interagir com eles, tirar dúvidas sobre as tramas, trocar ideias, ouvir, aprender. No final das contas, não existem fronteiras quando sentimentos se conectam. Acho que tais fronteiras se abriram para minhas histórias pelo fato de estas abordarem valores humanos universais. Lembro-me de um e-mail que recebi da Elisabetta, nossa editora italiana, dizendo-me que o SURPREENDENTE! era um livro que transmitia felicidade, e foi isso o que a cativou. Eles deram à edição italiana o título IL CINEMA DELLA FELICITÁ (O Cinema da Felicidade). Mas nada disso seria possível se não tivesse alguém que acreditasse no potencial das minhas histórias. Sou eternamente grato à Luciana e à Anna Luiza, da VB&M, que apostaram na boa recepção dos meus livros em outras culturas.

VB&M: Seu novo romance, O CIDADÃO DE BEM, ainda inédito, faz aberta crítica ao atual momento sócio-político brasileiro. Como foi o processo de escrever uma ficção ambientada quase em tempo real na realidade que estamos vivendo?

MG: A ideia para O CIDADÃO DE BEM surgiu no segundo semestre de 2018. Eu estava uma pilha de nervos por notar que o país sorria para uma alternativa que era quase um suicídio para a nação. Dentre as opções, só uma delas representava isso e os sinais eram claros. Um dia, minha filha pequena pediu para eu contar uma história de terror. Ao final, ela me perguntou se eu tinha medo de monstro e eu disse que não. Dias depois, a ficha caiu: havia, sim, uma figura que me metia medo, o tal “cidadão de bem”. Aquilo ficou martelando minha mente, pois ali se revelava um personagem pronto. Frequentei anonimamente perfis em que as pessoas dizem barbaridades sem cerimônia ou vergonha, em que conceitos como empatia e alteridade não existem, e passei um tempo me perguntando: “Vou mesmo meter a mão nesta cumbuca?”. Pois bem, resolvi enfrentar o fantasma que me assombrava. Eu já havia lido artigos, ensaios, matérias e livros técnicos sobre temas que o livro aborda, mas sentia falta de ver tudo aquilo em um drama, uma narrativa com personagens que muitos de nós conhecemos pessoalmente. Assim nasceu o livro. O processo de escrita foi pesado, imagine o que é se colocar na pele de um cidadão de bem e enxergar o mundo por seu ponto de vista. Ao mesmo tempo, foi uma experiência interessante, porque o livro é praticamente uma criatura viva, já que a história é baseada em falas reais de personagens conhecidos ou anônimos. A cada dia surgiam (e surgem ainda) fatos absurdos que poderiam tranquilamente compor o enredo. Acho que ficou um retrato, um registro de uma época sombria da vida brasileira, que vai fazer os leitores refletirem sobre suas escolhas. Porém, mesmo tratando de temas áridos como racismo, homofobia, violência, o mito da meritocracia e a disseminação do ódio nas redes sociais, a história é inspiradora e traz a mensagem de que nem tudo está perdido _ ainda há salvação.