OS MONSTROS SAGRADOS DA ALMA

Narrativas & Depoimentos traz hoje o primeiro capítulo de INGRID, um grande segundo romance, do húngaro naturalizado brasileiro Gabriel Waldman. O autor recupera a história de seu primeiro amor numa autoficção sobre o relacionamento de Andreas com Ingrid, linda jovem austríaca, filha de ex-combatente do Exército nazista durante a II Guerra Mundial. Adolescentes, eles eram colegas na escola internacional de São Paulo, ambos recém-chegados à cidade, novos imigrantes em busca de um lar. Como o autor, Andreas sobrevivera ao Holocausto e fugira com a mãe da Hungria comunista, no início da década de 50, para o Brasil; ele vem a descobrir que o pai de Ingrid comandara o campo de concentração onde metade de sua família foi assassinada. Elogiado por Celso Lafer, INGRID revela uma narrativa pungente sobre a descoberta do amor, a dificuldade de superar e enterrar o passado, sobre a necessidade de se reconstruir após a tragédia.

*

Assisto ao filme A lista de Schindler e, enquanto vejo o horror, reflito sobre Ingrid e os monstros sagrados ou nefandos que todos nós portamos na alma. Segredos de ternura e de amor, porém desperdiçados e saturados de remorso; outros, tenebrosos, inconfessos e inconfessáveis. Todos eles acorrentados e presos a sete chaves nos recônditos mais íntimos e profundos do nosso ser, a salvo da incursão dos escarafunchadores da alma e apenas vagamente intuídos por nós mesmos em pesadelos e devaneios. (Vejo no filme a cena de execução randômica dos presos realizada por Ammon, comandante do campo.) Eles dormitam como Belas (e Feias) Adormecidas, quietos, contidos, e no suspiro final de seus donos despertam e esvaem silenciosos, invisíveis, pela última contração dos lábios e pela derradeira torção das narinas. E levam consigo sua carga pesada de ressentimentos, mágoas e culpas. (Na tela, a cena da execução dos judeus escondidos no armário.)

Mas nem sempre é assim. Às vezes basta uma palavra, um incidente ou um filme como este agora para acordar e libertar os fantasmas que nos assaltam insinuantes e amorosos ou arrastando suas correntes uivando em fúria. Cabe a nós, então, confrontá-los, apavorados e constrangidos, antes da hora fatal.

Penso assim, um tanto pomposo, enquanto assisto assoberbado ao filme com meus amigos, os três mosqueteiros que eram quatro, o D’Artagnan (eu) incluso. Como no livro de Dumas. No início de nossa amizade, eles me toleravam um tanto relutantes devido ao meu português claudicante, frequentemente incompreensível, e o sotaque atroz. Eu era uma espécie de peça de museu cada vez mais rara, por ser o único sobrevivente do Holocausto no grupo e, ainda por cima, fugitivo autêntico do comunismo. Nas horas vagas sou escritor, autor de alguns livros medíocres que os três mosqueteiros elogiam por caridade e que colhem poeira nas livrarias. Alan, Celso, Mario e eu, Andreas, o refugiado húngaro, contemplamos as imagens sem mexer um músculo, as pupilas coladas na tela. Os três mosqueteiros que eram quatro.

Já não sei mais a que altura do filme aparece Ingrid à minha frente na escuridão do cinema. O fantasma-mor, a fúria mais rebelde da minha alma, a guardiã do segredo mais bem guardado do meu passado turbulento. Ela não arrasta correntes como os fantasmas traquinos habitualmente fazem, nem precisa. Está acorrentada a mim indelevelmente pela nossa história comum. A alemã, filha de um herói incensado do Terceiro Reich e genocida da gema, exibe sem ostentar sua condição ariana com descendência racial impecável. Cordeiro em pele de lobo que trota com a alcateia, mas que no fundo da alma é cordeiro manso e ama um judeu proscrito e que, pelo amor que me dedica, dobraria sem hesitar os joelhos e recitaria o kadish diante do túmulo dos mártires. Cabelos louros flamejantes em rabo de cavalo, olhos azuis de agredir a vista de quem os contempla, uma verdadeira Lorelei das lendas germânicas, para quem se liga apenas ao visual. Uma simbiose da piedade de Madre Teresa de Calcutá com a determinação férrea de Scarlett O’Hara, para quem sabe ler os códigos do coração.

– Olá, Ingrid – cumprimento-a. – Você deveria aparecer na hora do meu último suspiro. Antecipou-se um pouco.

– Pois é, Andreas, e quem resiste à Lista de Schindler?

(Cena de Ammon executando os presos).

– E agora, Ingrid, o que você diz? Entre seu pai e o imperativo “não matarás”, qual deles você escolhe? Entre mim, o “judeu”, e a ideologia racial, qual é a escolha mais justa?

Eu nem precisaria perguntar: a resposta brilha em seus olhos, no beijo que ela deposita no meu rosto, nos cabelos que colam na minha face, e eu a abençoo por isto. Percebo alarmado que cada vez mais eu penso e vejo o filme com os olhos de Ingrid.

Precisamente às dez horas daquela noite de primavera desconcertante com calor tropical intercalado por instantâneas rajadas de vento gélido, saímos do Cine Belas Artes. Zonzos, desequilibrados depois daquela surra na sensibilidade e no sistema nervoso, uivamos por uma caneca de chopes para lubrificar a garganta seca e acalmar as emoções. Desabamos no bar Riviera, do outro lado da rua da Consolação. Os chopes já estão na mesa junto com um prato de frituras e ninguém fala nada. Não por falta de esforço. O silêncio nos sufoca, ansiamos por retomar algum semblante de normalidade. Mas falar o quê? Detalhes técnicos do filme? A posição da câmera, talvez? A iluminação? A interpretação? Pura banalização, só as vítimas têm o direito de testemunhar sobre aqueles dez anos de noite interminável e tormentosa da História, e elas não têm mais voz. E eu continuo a pensar em Ingrid com uma dolorosa saudade e uma ponta de culpa. Já estamos quase nos despedindo para cada um voltar para sua casa com a alma pesando nos calcanhares e os pensamentos voando em torno do filme e seus trechos fortes, inesquecíveis. Mario finalmente encontra as palavras certas. Não são palavras humanas, pois ninguém, vivo ou morto, dispõe da autoridade moral para verbalizar o sagrado. O Holocausto exige introversão, reverência, oração e lágrimas. E talvez um “amém” contrito. Tudo a mais seria sacrilégio. Ele diz, olhando para dentro de sua alma, e recitando o trecho do Livro Sagrado:

– “A ira do Senhor se abate sobre dez gerações de quem ouse levantar o braço contra Seu Povo”.

A perspectiva de uma justiça divina alivia-nos prontamente. O caso agora está numa instância maior, não somos mais protagonistas responsáveis por nossa contemporaneidade.

Nossas almas apaziguadas voltam ao seu lugar devido no peito, e os pensamentos finalmente enxergam a luz do dia na negritude do desespero. Agora, sim, podíamos pensar em nos recolher, consolados pelo enunciado bíblico e reconfortados pelo castigo infalível que fatalmente atingirá os infratores da sentença divina.

– Ai de nós – acrescenta Mario, para reforçar as palavras inspiradas. – Desta vez não bastarão dez gerações.

Frase perfeita para a ocasião. Inconteste, definitiva. Alguns de nós talvez ajoelhem antes de dormir, agradecendo-lhe a bondade de ter tirado o peso do Holocausto de nossas costas. Crime e castigo, como diria Dostoiévski, nesta ordem infalível. Bom sono.

Celso pede a conta e apenas eu fico sentado, pensativo, hesitando entre o silêncio, com a perspectiva de uma noite de sono reparador, e a oposição às palavras de Mario, acompanhada por uma noite turbulenta de discussões. E lá mesmo, no assento plástico do bar Riviera, eu passo a remoer minha história pessoal. A maldição de Deus não deveria se dirigir a mim, apesar de eu pertencer ao “Povo do Senhor”?, pergunto-me. E Ingrid, não seria ela a injustiçada, apesar de ser do povo que levantou o braço? A vida é por demais complicada. Um turbilhão em perpétuo movimento onde o joio vira trigo, o certo vira errado e vice-versa em frações de instantes. Um redemoinho de ilusões num caleidoscópio desvairado. Penso nisso e quero logo revogar o pensamento, pois não sei como transmiti-lo aos meus amigos.

Mas urge dizer algo, não posso deixar a hipocrisia vencer só por ser esta a solução mais cômoda. Celso já está pagando a conta, e Mario calcula a parte que cabe a cada um de nós; os olhares convergem para minha postura conspicuamente inerte, como quem não pretende levantar tão cedo assim. Sei, porém, que enunciar o que penso resultaria numa noite de revelia e quatro almas confusas. Tarde demais:

– Dez gerações, você diz – e encaro Mario relutante, porém com desafio. – De fato, a Bíblia menciona isto. Mas quando Eros e Thanatos em conluio íntimo se apossam de nossas almas, aí, sim, pode se encontrar um atalho entre as gerações danadas e o perdão do Senhor.

Tenho a impressão de repetir o que Ingrid sussurra no meu ouvido.

Alan me rebate da altura de seu diploma de psicólogo:

– Caracas, amigo. Eros e Thanatos, amor e morte, são pulsões antagônicas em extremos opostos do espectro psicológico.

Admiro a precisão léxica de seu raciocínio. O próprio Freud não diria melhor. Ele continua:

– Um ou outro prevalece em nossa vida. Jamais os dois juntos.

Decido apelar, e dane-se a noite de sono. Em deferência a meus amigos, procuro evitar ares de intelectual esnobe e imprimir às minhas palavras a leveza de uma mera hipótese:

– Pelas teorias antigas de astrofísica, o homem jamais chegaria aos confins do Universo. A duração limitada da vida não permitiria. Mas, pela teoria da relatividade, existem atalhos no espaço, os tais “buracos da minhoca” jamais comprovados, que aparecem nos cálculos matemáticos e que permitem encurtar a jornada. Se existe no espaço, por que não na psicologia? Usando a imaginação, por que não diminuir a distância entre os dois extremos, Eros e Thanatos? E, indo só um pouquinho mais longe, por que não achar algum atalho, algum “buraco da minhoca” entre as dez gerações danadas da Bíblia? E encurtar a duração do castigo?

Alan interrompe no limite de sua paciência:

– Agora chega, Andreas. Não basta ser diletante em psicologia dando seus palpites? Quer dominar também a astrofísica? É demais, mesmo levando em conta tuas pretensões. Além disso, para que encurtar o castigo? Pelo que os nazistas fizeram, mereceriam mais vinte gerações de danação.

– E daí? O que o tataraneto tem a ver com os pecados dos tataravôs? Nós aprendemos isso há muitas e muitas gerações por experiência própria e abolimos a lei de talião. Deus deve ter aprendido muito antes de nós que errou na Bíblia. Se não fosse assim, Ele não seria Deus. Vingança gera retribuição que gera vingança que gera retribuição e assim vai. – Paro e crio forças para concluir o pensamento que sei que terá um efeito devastador. – Além disso, eu experimentei e percorri cada milímetro do tal do buraco da minhoca, cada ano luz de sua extensão – respondo já calmo e resoluto e penso novamente em Ingrid, e desta vez sem saber exatamente o que penso.

Cansados e exauridos pela noite, todos anseiam por suas camas, mas apesar de tudo eles respeitam meus conhecimentos, e em especial minha vivência em relação ao Holocausto. Sou pretensioso, talvez, admito que às vezes floreio, mas nunca inventei nada que não tivesse fundo de verdade. E eles sabem disso.

O grupo volta a sentar a contragosto, mas o espanto ganha do cansaço. Celso desafia me, curto, inapelável e um tanto desconfiado:

– Conte.