POR UMA LITERATURA ALEMÃ NADA ARIANA

Anna Luiza Cardoso

Conversa Com (A)Gente Aleksandra Erakovic, gerente de direitos estrangeiros da poderosa editora Kiepenheuer und Witsch, a KiWi, baseada em Colônia, sobre suas percepções do mercado editorial alemão, sua experiência com a venda de direitos de tradução e os desafios para se transpor a barreira da língua em um mercado dominado pelo inglês. Comenta, ainda, os títulos mais interessantes da KiWi para a temporada e o atual momento de transformação da produção literária alemã: “O que tem me empolgado atualmente é o surgimento de autores alemães cujas famílias têm origens as mais distintas, trazendo uma nova perspectiva literária a essa sociedade que se acostumou a ser interpretada por um mesma ângulo durante anos”. Uma conversa elucidadora sobre o atual momento da literatura alemã e os novos caminhos que esta vem tomando.

VB&M: Você está no mercado editorial há 11 anos. O que mudou desde sua chegada em 2010?

AE: De modo geral, as principais mudanças ocorridas nesse período foram a popularização do e-book e a consolidação da Amazon como uma das principais varejistas de livros do mundo, tanto para o físico quanto para o digital. Mas o que afeta mais diretamente meu trabalho de encontrar editoras estrangeiras para nossos autores e seus livros é a tendência de concentração dos mercados editoriais no mundo todo, em que alguns poucos grupos gigantes detêm a maior parcela dos mercados. É mais difícil encontrar um editor estrangeiro aberto à aposta de traduzir um autor alemão desconhecido se as decisões para a maioria dos selos existentes passam pelas mãos de algumas poucas e mesmas pessoas.

VB&M: Sua experiência como gerente de direitos estrangeiros mudou a forma como você lê a literatura alemã?

AE: Provavelmente, sim. Quando leio, eu automaticamente penso se aquele livro teria apelo para o leitor internacional, o que nele eu realçaria para despertar a atenção do editor estrangeiro, etc.

VB&M: Da perspectiva de sua atuação profissional, quais são os maiores atrativos da literatura alemã para o editor estrangeiro? Usando o jargão do meio, quais livros viajam bem e quais, apesar de extensamente lidos e apreciados na Alemanha, enfrentam barreiras intransponíveis?

AE: Isso é difícil de dizer pois eu afirmaria que certamente todos os nossos livros merecem e deveriam viajar bem… Mas claro que sei, por minha experiência cotidiana, que alguns livros o fazem com mais facilidade que outros. Considerando-se a história da Alemanha, o que as pessoas normalmente buscam de nossa literatura são obras sobre assuntos sérios, que lidam com profundas questões existenciais ou históricas, como a Segunda Guerra Mundial e o regime nazista. Se tivermos esses temas escritos de forma acessível e entranhados a uma saga familiar, então, tanto melhor. É isso que normalmente viaja.

O mais difícil é fazer viajar livros que parecem muito específicos para uma certa região, “alemães demais”, como costumo escutar. Enquanto por um lado eu argumente que mesmo uma obra arraigada a determinado local pode, através de sua especificidade, convidar a reflexões sobre tópicos universais, compreendo (mas não concordo!) que se considere demandar demasiada entrega do leitor estrangeiro. Além disso, é muito difícil fazer viajar livros engraçados. Eu sei que os alemães não são internacionalmente conhecidos por seu humor, mas nós realmente temos autores muito engraçados! Livros muito longos também são difíceis de viajar, pois demandam um disposição ao risco ainda maior do editor estrangeiro.

Com relação aos aspectos mais interessantes da literatura alemã, é difícil dizer pois temos muito a oferecer. Mas o que tem me empolgado atualmente é o surgimento de autores alemães cujas famílias têm origens as mais distintas, trazendo uma nova perspectiva literária a essa sociedade que se acostumou a ser interpretada por um mesma ângulo durante anos.

VB&M: A hegemonia política e econômica da Alemanha e sua riqueza cultural e literária estão em desalinho ao seu poder linguístico. Certamente, não se trata de um idioma “menor”, mas definitivamente não é uma língua amplamente falada e lida pela maioria do mercado editorial internacional, ficando atrás do inglês, francês e espanhol. Como gerente de direitos estrangeiros de uma poderosa editora alemã, como você vive essa contradição? Como supera a barreira da língua?

AE: Essa é uma triste verdade difícil de ser superada pois, obviamente, editores estrangeiros querem avaliar eles mesmos os livros que decidirão publicar, não precisando confiar totalmente na avaliação de leitores externos. Felizmente, ainda há muitos mercados em que se tem leitores de alemão em muitas editoras, e eles são importantes para nós pois, ao comprar um título nosso, sinalizam a outros editores que não leem o idioma que aquele livro tem potencial internacionalmente, incentivando-os a contratar leitores de alemão que possam lê-lo e avaliá-lo. Para ajudar na avaliação de editores que não leem alemão, tentamos providenciar a maior quantidade possível de amostras de tradução em inglês de nossos livros e, claro, contamos com uma rede de intermediários que nos ajudam a espalhar os livros mundo afora: tradutores, scouts, agentes, o Instituto Goethe, etc. O que ajuda muito são traduções completas das obras para idiomas majoritários, como inglês, francês e espanhol, mas obviamente não temos essas traduções para todos os títulos de nosso catálogo.

VB&M: Como você percebe que um título específico tem potencial para construir uma carreira internacional robusta?

AE: São muitos aspectos em conjunção, mas na maioria dos casos de sucesso que tive até agora havia um texto que agradava a público e crítica, alcançando boas vendas e resenhas consagradoras. Com isso, conseguimos os primeiros contratos de tradução em países vizinhos, como Holanda e Itália, o que nos ajuda a despertar o interesse de editores em outros territórios. Quando começa a rolar, fica cada vez mais fácil convencer cada vez mais gente a dar uma chance ao livro. E isso é o mais difícil: conseguir que os editores realmente leiam o texto, inundados que são por milhares de manuscritos. É preciso ter algo que chame a atenção para além da narrativa em si.

VB&M: Você apontaria três títulos da lista da KiWi que, segundo a sua avaliação, podem e merecem construir sólidas carreiras internacionais? E do que você sabe sobre o Brasil, que título(s) parece(m) mais relevante(s) para o atual momento de pandemia e desgoverno que vivemos por aqui?

AE: Ok, escolho três apesar de querer escolher 15. Vamos lá:

1. IRMÃS EM ARMAS (tradução livre, como todas aqui feitas), de Shida Bazyar, conta a história de três melhores amigas e é um de meus romances favoritos de nosso catálogo deste ano, escrito por uma jovem e talentosa autora que certamente vai longe. E para reiterar minha opinião, segue aqui uma frase de uma das primeiras resenhas publicadas sobre o livro e que resume bem o seu apelo: “Shida Bazyar é uma autora talentosa cuja escrita vai atrair leitores de Elena Ferrante, Zadie Smith e Kamila Shamsie. […] IRMÃS EM ARMAS é uma leitura imersiva e provocante com trama forte e personagens profundamente identificáveis, que explora questões urgentes da contemporaneidade como racismo e sexismo na sociedade” (New Books in German).

2. Uma autora que não está em nosso atual catálogo de lançamentos e que já tem uma sólida carreira internacional, mas infelizmente ainda não publicada no Brasil, é Alina Bronsky. Suas matriarcas complicadas e teimosas sempre fazem valer a leitura, mas em O ÚLTIMO AMOR DE BABA DUNJA, ela é especialmente competente para criar uma heroína que constrói sua vida do nada e a defende obstinadamente contra qualquer um que tente intervir, mesmo que com as melhores intenções.

3. Outro autor que tem sólida carreira internacional mas segue inédito no Brasil é Volker Weidermann e sua narrativa de não ficção OSTEND. O VERÃO ANTES DAS TREVAS, um daqueles livros em que não é preciso ter interesse no assunto (embora seja difícil não ter – N.T.) e ainda assim ser envolvido pela narrativa e pela atmosfera evocada. Uma leitura melancólica e iluminadora.

Com relação ao Brasil, apesar de não termos nada específico para a situação que vocês estão vivendo, eu sempre recomendaria CHOQUE DE REALIDADE, de Sascha Lobo, pois como ele diz, a realidade cobrará a conta queira você ou não, então por que não estar preparado?

VB&M: Por fim, como a crise do Covid impactou o mercado editorial alemão e, mais especificamente, os negócios e atividades da KiWi?

AE: Na verdade, os negócios têm ido surpreendentemente bem até agora. Apesar de as livrarias terem sido fechadas no primeiro lockdown, elas rapidamente desenvolveram serviços de click and collect (pague e pegue), para que as pessoas possam comprar online e buscar os livros ou recebê-los em casa. As livrarias foram muito criativas e contaram com a boa infraestrutura de distribuição de que dispomos, que possibilita que praticamente todos os livros adquiridos online sejam entregues no dia seguinte à compra em qualquer lugar da Alemanha. Juntou-se a isso o fato de que as pessoas queriam ler, pois não havia nada mais para fazer além de assistir à televisão. Então, nós temos ido muito bem, apesar dos cortes em marketing e do cancelamento de turnês literárias, etc.