QUANDO JUSCELINO INFARTOU

Juscelino Kubitschek, Autran Dourado (ao centro, escondido) e Augusto Frederico Schmidt | Foto: Reprodução

A Narrativa desta semana é o excerto de uma obra-prima do memorialismo brasileiro, hoje fora de catálogo: GAIOLA ABERTA: TEMPOS DE JK E SCHMIDT, memórias de Autran Dourado enquanto secretário de Imprensa do ex-presidente Juscelino Kubitschek, lançadas pela Rocco em 2000. Quando um gênio do romance e do conto dedica-se à escrita de memórias políticas, a perspicácia e a graça do texto só podem revelar uma imensidão da alma humana. Nesse trecho, Autran narra o episódio do infarto de JK, que, contra sua vontade, ele teve de ocultar da imprensa. A temível primeira-dama, dona Sarah, chamou-o às pressas ao Palácio Laranjeiras para somar-se aos criativos esforços do governo visando a despistar os jornalistas. Parece que a política é sempre incompatível com a verdade, ainda mais nesse pobre Brasil, eternamente amedrontado do golpe.

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Autran Dourado

(…) às 7:30, recebi um telefonema dizendo que dona Sarah mandara me chamar. O meu carro oficial não tinha ainda chegado, peguei um táxi, que rumou para o Palácio das Laranjeiras. Nunca dona Sarah tinha me chamado, devia ser coisa séria, assim tão cedo. Como Juscelino, como toda a gente, eu tinha medo dela. Uma vez ele disse ao Schmidt que pensava ter se casado com um tigre.

Quando cheguei, fui direto para a varanda. Lá se encontravam o Geraldo Carneiro, o Sette Câmara, o Aluízio Fonseca, diretor do Hospital dos Servidores, e o Oswaldo Penido. Chamamos você aqui porque o Juscelino teve um enfarte, disse ela. Queríamos saber a sua opinião, você que é o secretário de imprensa. Todos aqui são favoráveis a que não se divulgue nada. A minha opinião, dona Sarah, é que se deve revelar o fato. Agora, eu pediria apenas à senhora que os nossos amigos, que não conhecem a imprensa, não deixassem escapar nada. Vamos divulgar, mas antes vou preparar a imprensa. Vai ser uma coisa fantástica. O país inteiro solidário rezando pela saúde do presidente. De jeito nenhum, disse ela. Primeiro tem o Jango, vice-presidente, que é figura suspeita para os militares. Não vejo problema, Lott é o ministro da Guerra, Jango é o substituto constitucional, disse eu.  Sim, mas Juscelino não  pode  demonstrar fraqueza, disse ela. Se  vocês  garantirem  o  Catete,  eu  seguro  a  barra aqui em cima, disse Aluísio Sales.

Chamei o Sette, o Geraldo e o Penido e fomos para uma sala ao lado. Gente, o que dona Sarah está querendo é uma loucura, disse eu. Não é tanto assim, não, eu imito perfeitamente a assinatura do presidente, disse Geraldo. Já melhora, disse eu.

Os dias foram se passando, os jornalistas me procuravam e eu ia inventando notícias. A coisa corria bem, até que aconteceu um acidente mais grave. A jornalista Sílvia Lara Resende me telefonou dizendo que tinha visto uma ambulância subindo a ladeira, para o Palácio das Laranjeiras, com um bujão de oxigênio. Na mesma hora eu disse que era para um funcionário do Palácio.

Autran, estou de acordo que não se deve revelar nada, disse Geraldo. Mas temos de abrir uma exceção para o governador Juraci Magalhães. Não confio nele, é da UDN, disse eu, preconceituoso. O Geraldo andava namorando a UDN através do seu primo udenista José Aparecido de Oliveira. Podem deixar comigo. Amanhã eu pego um avião e vou a Salvador conversar com ele, tenho a certeza de que não irá contar a ninguém, disse o Geraldo. Não contou.

Mas um enfarte de presidente é a coisa mais difícil de esconder, os jornalistas me cercavam. Estavam certos de que havia alguma coisa, vinham me perguntar. Autran, estamos certos de que o presidente está doente, disseram. Doente? Ele está bem como nunca. Tanto assim que, daqui a pouco, está indo para Belo Horizonte.

Fui lá dentro e vi que o helicóptero estava no jardim. Apanhei o chapéu do presidente. Peguei o helicóptero, a uma certa distância acenei para os jornalistas, como fazia JK.

Falei com o coronel Lino Teixeira, da Aeronáutica, sub- chefe da Casa Militar, para ele providenciar o Viscount presidencial. Quando cheguei a Belo Horizonte, da base aérea da Pampulha telefonei para um jornalista amigo meu, de O Estado de Minas.

Autran, está correndo por aqui a notícia de que o presidente teve um enfarte, disse ele. Enfarte coisa nenhuma, você quer uma declaração dele? disse eu. Redigi uma declaração de JK sobre um fato qualquer importante, li para o meu amigo, que informou ao Rio que o presidente estava bem e que tudo não passava de boato.

Um dia o funcionário da portaria me ligou dizendo que estava lá o general Lott e me avisava que ele estava enfurecido. Mandei que ele subisse. O que está acontecendo? disse Lott. Há três semanas que não despacho com o presidente. Tenho aqui uns atos de promoção a general, para mim importantes. Pode deixar comigo, que os devolvo assinados, disse eu. Foi assim que foram feitos alguns generais e embaixadores.

Mas os jornalistas voltaram a ficar indóceis, queriam ver o presidente. Não há problema, amanhã vocês vão vê-lo, disse eu. Chamei o chefe do cerimonial, Aluízio Napoleão, e disse a ele que providenciasse a apresentação de credenciais de qualquer embaixador pouco importante, mas que o presidente queria que fosse feita no Palácio das Laranjeiras. Meu Deus do Céu, isto nunca aconteceu antes, sempre foi no Catete, disse Aluízio. Mas o presidente quer, disse eu. No dia seguinte o presidente se vestiu de maneira apropriada, foi para o salão receber as credenciais do embaixador. Os fotógrafos bateram suas chapas. Depois voltou para a cama. Foi assim que se escondeu do país o enfarte do presidente. Que foi um risco, foi; se valeu a pena não sei.

(Episódio contado ao jornalista Carlos Alberto Tenório, para o seu livro de memórias.)