RETORNAR É POSSÍVEL

A escritora Andrea Nunes, autora de A CORTE INFILTRADA (Buzz), é quem encerra a semana com o conto “A borboleta e o voo”, que compõe a audiossérie “Vai ficar tudo bem”, da Storytel, e sai pela primeira vez em texto aqui no blog. Um pouco antes do início da pandemia, um pesquisador se isola em uma ilha para estudar os pinguins que ali habitam e fugir das complicações de sua vida conjugal. Três meses depois, ao voltar para casa, ele teme não encontrar sua família.

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A borboleta e o voo
Andrea Nunes

Daniel ajeitou a gola do casaco enquanto observava as ilhas do Arquipélago diminuírem a cada segundo da janela do avião, até adquirirem o formato de uma borboleta de asas rasgadas, levantando voo.

Seu plano inicial, ao chegar ali de mochilão nas costas, era passar um mês e meio no Arquipélago, concluindo a pesquisa de campo para seu doutorado em biologia marinha. Uma ocupação bem planejada para distrair a mente após a separação tumultuada de sua esposa Amanda. O divórcio tinha vindo depois de um período conjugal difícil em que a grana ficara curta e ambos tiveram de dobrar o turno de trabalho.

As brigas eram tão constantes que, nos silêncios que as seguiam, Daniel decorara todas as fissuras do teto do quarto. As costeletas sempre dormiam ensopadas de empoçar tristeza, e, quando reconciliações ainda eram possíveis, havia sexo e beijos salgados que não matavam sede alguma.

Passada a dor da separação da única mulher que realmente amara na vida, ele desfrutou da primeira semana de exílio nas ilhas. A dificuldade de contato com a civilização, o sinal de celular praticamente inexistente no povoado em que vivia, o acesso a jornais com cinco dias de atraso_ e mesmo assim apenas quando ia à capital do Arquipélago_ permitiram que se dedicasse inteiramente à sua pesquisa. Além do mais, não ter notícias de sua vida anterior, não ver nada nem ninguém que o lembrasse das pessoas que deixara no continente antes de partir, restaurava a paz de espírito de que tanto precisava. Nas semanas que antecederam a sua partida, ignorou algumas ligações de Amanda. Não queria mais gastar energias brigando. Afinal, tudo o que estava buscando naquele momento era sumir para se reequilibrar e assim conseguir encontrar as respostas: As respostas acadêmicas da sua pesquisa e as respostas emocionais da sua vida.

Aquele desligamento voluntário do mundo, porém, teve um efeito inesperado: Daniel demorou semanas para saber que havia um novo vírus matando gente pelo mundo. E demorou mais outro tanto de dias para descobrir que uma pandemia mundial estava isolando as pessoas e os países.

Quando se deu conta de que aquele vírus poderia atrapalhar seus planos de voltar para casa, mesmo com passagem já comprada, era tarde demais: todos os voos já haviam sido cancelados. Estava isolado na ilha.

Resignado com as circunstâncias, Daniel trancou-se novamente no alojamento e aproveitou para adiantar a parte teórica da tese de doutorado. Não quis saber da evolução da doença no mundo – há algum tempo havia decidido que pinguins eram mais interessantes do que pessoas.

Entretanto, conforme as semanas passavam, outro tipo de vírus contaminava o pesquisador: os efeitos colaterais do isolamento cresciam junto com uma barba desgrenhada que ele não fazia questão de cuidar. À noite, entre o fim do vinho e o torpor do sono, pedia a um deus que não tinha mais nome para não ver o rosto dela. O sorriso dela. O brilho nos olhos da última vez que tinham feito amor. Amanda.

Três meses depois, quando a quarentena começou a abrandar, ele sabia que precisava voltar ao Brasil. Não tinha mais casa, mas ao menos tinha um trabalho concluído para entregar.

Obrigou-se a fazer a barba e tomar banho. Vestiu roupas limpas e, depois de alguns dias na capital do Arquipélago, conseguiu remanejar a passagem de volta.
O avião naquele momento atravessava a cordilheira dos Andes. Subitamente nervoso, Daniel sentiu como se estivesse avançando por sobre a barreira que erguera em torno de si para se proteger da dor.

Olhou para o notebook no colo e o nervosismo logo se transformou em ansiedade.

Em breve terei sinal de internet novamente! Como anda o mundo, recuperando-se da pandemia?

Pensou na família e nos amigos, e, subitamente apavorado, se deu conta que não sabia se o vírus tinha levado alguém querido. No pequeno aeroporto onde embarcara, avistara de relance na banca de revistas algumas manchetes de jornais, todos fazendo um balanço do número de sobreviventes e das baixas em cada país do mundo, e do esforço dos povos para reconstruir a vida após o vírus.

Daniel não comprara os jornais, de tão ansioso que estava para entrar no avião e garantir seu assento no único voo disponível daquela semana.

Como pude ter estado tão alienado por tanto tempo? Preciso ter notícias das pessoas assim que esse avião pousar!

O voo tinha uma conexão no Chile, mas era em um tempo absurdamente curto. A malha aérea ainda estava muito desorganizada, e ele teve de correr para não perder o voo que partiria dali a vinte minutos para o Brasil.

Na fila de embarque, que o pesquisador alcançou já quase encerrada, ele ativou o celular que estivera desligado por tantos meses. O aparelho começou a pular freneticamente em seu bolso traseiro, demarcando com sons múltiplos a trilha sonora de seu retorno ao mundo real e ao mundo virtual.

A caminho da aeronave, percebeu que havia uma chamada de voz de sua mãe no WhatsApp.

Aliviado por confirmar que ela estava viva e com imensa vergonha de não ter dado notícias até então, atendeu imediatamente.

– Mãe? É você?

No meio do chiado da conexão de Wi-Fi que já ameaçava desaparecer com a proximidade do avião, ele ouviu um suspiro e uma voz indignada:

– Claro que sou eu, Daniel! Graças a Deus você atendeu! Por onde você anda agora?

Os olhos se encheram de lágrimas ao ouvir aquela voz tão querida e cheia de vida. Sua mãe sobrevivera à pandemia!

– Eu estou bem e voltando pra casa, mãe. Depois falamos de mim… você está bem? Onde está nesse momento?

– Estou no hospital, meu filho… Ah, meu Deus… Você não soube, não é ?

A fila não parava de andar, as pessoas se empurrando, ansiosas para entrar na aeronave. As pernas de Daniel começaram a tremer, ele parou, mas a própria tripulação do voo o pedia que entrasse no avião.

– Não soube de quê, mãe? Fale logo, pelo amor de Deus, a ligação vai cair…

– Amanda, meu filho. Eu vim correndo assim que me contaram….

O comissário de bordo praticamente arremessou o relutante pesquisador para dentro da aeronave, antes de fechar as portas com um ar ameaçador.
O Wi- Fi se foi, a ligação caiu, levando junto o mundo de Daniel.

O voo até o Brasil foi uma tortura. Na poltrona da frente, as pernas que sustentavam o homem de um metro e noventa se encolhiam rente ao corpo, o espaço minúsculo entre as cadeiras impedindo a desejada posição fetal.

Amanda… o vírus estava levando Amanda! Ou será que ela já estaria morta?

Não era justo ela morrer sem saber o quanto ele sentia a sua falta. Que ele daria tudo para abraçá-la de novo. Que – percebeu naquele momento – só estava voltando para o Brasil porque tinha esperança de reconquistá-la.

A dor agora se misturava com a raiva de si mesmo.

Como pudera ser tão estúpido? Tão egoísta? Fora embora se isolar no seu mundinho acadêmico e deixara uma pandemia levar embora a mulher de sua vida… ele merecia mesmo perdê-la mil vezes. Mas ela não merecia morrer. Ele queria estar ao seu lado. Nem que fosse para dar tempo de pedir perdão e dizer adeus.

Depois do que pareceu um tempo interminável, o voo aterrissou.

Daniel segurava o celular como se fosse um artefato sagrado, como se dependesse daquela conexão para respirar.

Submeteu-se com angústia aos procedimentos de segurança que ainda eram muito rígidos para a entrada no país, mesmo sendo brasileiro. Medição de temperatura, exame de bagagens, desinfecção de roupas.

Quando finalmente o celular deu sinal, chegou logo outra chamada da mãe. Dessa vez era de vídeo.

O dedo trêmulo aceitou a chamada, e um estranho colorido preencheu a tela.

Balões e ursinhos contornavam uma cama de hospital, onde Amanda segurava um bebê enrugado, vestido num macacão amarelo.

A mãe de Daniel estava com um sorriso de orelha a orelha, e levou o aparelho para junto da cama, sem parar de falar:

– Ele tem a mesma marca de nascença que você tinha na orelha, meu filho. E a mesma fome também! Um menino muito saudável, não para de mamar! Você precisava ter visto como berrou a na hora em que nasceu. Deus do céu, tentamos tanto te avisar a data, e você tão desconectado! Sim, eu sei que você me disse que estava viajando para esse Arquipélago para a pesquisa de campo do seu doutorado, mas deveria ter deixado um endereço para comunicações de urgência, já que a internet era tão ruim e seu celular teve de ficar desativado. Típico seu se enfurnar com esses pinguins e esquecer do mundo, não é?

O rosto cansado de Amanda preencheu a tela, junto com a criança que ela segurava.

Daniel encheu os olhos de lágrimas ao ver a mulher que amava segurando um bebê que franzia o nariz do mesmo jeito que ele quando estava com raiva.

-Amanda, por favor, me perdoe, se puder! Eu não deveria ter sumido assim…senti tantas saudades! Não posso perder você! E agora temos um bebê lindo pra cuidar! Deus, eu tenho um filho!!!

Apesar dos sinais de exaustão, Amanda sorriu e ajeitou o bebê que começava a choramingar junto ao seu seio.

– Também preciso te pedir desculpas por demorar tanto a ter coragem de te ligar, Daniel. Quando eu soube da notícia da gravidez, ainda estava muito magoada com a separação tão recente, e fui adiando o quanto eu pude o contato com você ou sua família. A verdade é que eu não fiz muitos esforços para te dar essa notícia. E quando finalmente resolvi correr atrás e contatei sua mãe, já era muito tarde. Você estava nesse lugar inacessível, e perdemos o contato.

– Estou chegando aí em vinte minutos! Eu amo muito você! Não… eu amo muito vocês!

– Parabéns, papai. Nós também te amamos e não vemos a hora de te abraçar.

O pesquisador caiu de joelhos em pleno saguão de desembarque de passageiros, chorando mais que o bebezinho faminto. Ele saíra do seu casulo e voara de volta para casa com medo de enfrentar sepulturas. Em vez disso, encontrara um berço. E encontrara as respostas da vida, que parecia ensinar, à beira do fim, suas infinitas possibilidades de metamorfose.