UMA LIVRARIA PARA CHAMAR DE SUA

Anna Luiza Cardoso

Uma livraria para chamar de sua é o sonho de praticamente todo leitor apaixonado. Aventurar-se no negócio, porém, não é para qualquer um. O investimento é ousado, e os riscos, num país como o Brasil, muito altos. No meio de uma pandemia, então, parece loucura. Mas felizmente há quem o faça e prove que loucura é não acreditar nos livros. É o caso da Livraria Megafauna, idealizada pelas editoras Fernanda Diamant e Maria Emília Bender, e inaugurada em novembro de 2020 no térreo do icônico edifício Copan, no centro de São Paulo. Também na empreitada estão o pai de Fernanda, o bibliófilo e veterinário Thiago Salles Gomes, a arquiteta Anna Ferrari e o empresário Arthur Mello, que Conversa Com (A)Gente sobre seu mergulho de cabeça no mercado livreiro. Mestre em Economia e Finanças pela FGV e mestrando em Escrita Criativa no Vera Cruz, Arthur começou sua carreira no mercado financeiro em 2003, onde se escondeu, nas palavras de suas sócias, até receber o convite para se juntar à Megafauna. Leitor ávido desde a infância, é grande entusiasta das livrarias de bairro e sonhava com o dia em que definiria a si mesmo como livreiro_ ou meio livreiro, como prefere dizer. Em nosso papo, Arthur comenta os planos da Megafauna, que se propõe não só livraria, mas espaço de debate e reflexão, além de canal de conteúdo; reflete sobre a importância das livrarias de bairro; suas impressões sobre o mercado editorial e livreiro; suas últimas leituras; e a experiência do mergulho nesse universo empresarial: “Foi um convite irrecusável. Gosto de pensar que, assim como no mercado financeiro, sempre é preciso um pouco de sorte e de timing. Foi o que aconteceu.”

VB&M: Como você define a importância da livraria de bairro para a saúde de toda a comunidade em torno dela?

AM: Acreditamos que a livraria física sempre terá seu espaço, mesmo com o avanço do comércio on-line. O centro de São Paulo tem um afeto com a literatura e a Megafauna se insere nesse ambiente de maneira orgânica, com a expectativa de ser uma livraria da vizinhança e dos trabalhadores do centro.

Pensamos que um dos diferenciais de uma livraria física é exatamente o lado humano, a relação olho no olho com os livreiros e com todo o universo que cerca os livros. Há uma relação de carinho, confiança, de troca. Há um efeito de rede enorme, e isso se traduz em um espaço vibrante, plural, interessante. Nosso público valoriza e reconhece os efeitos positivos de um lugar como esse.

Além disso, vale lembrar que estar dentro do Copan não é algo neutro. É um edifício icônico, que tem uma atmosfera muito própria tanto na arquitetura quanto na relação com a rua, com o centro de São Paulo e com a própria comunidade de moradores.

VB&M: Como ativos participantes da campanha de valorização da livraria de bairro, vocês devem ter objetivos específicos em mente, quais seriam?

AM: Acreditamos que a vocação da Megafauna é se tornar um lugar de encontros, de programações culturais e de eventos, mas que só poderão acontecer quando a situação da pandemia se resolver.

Nosso principal objetivo é transformar a Megafauna num projeto autossustentável, em que a loja física nos dê folego e recursos para um projeto mais amplo de produção cultural. A comercialização dos livros é o nosso ponto de apoio para atuarmos de forma perene na cena cultural brasileira.

VB&M: Inaugurada em novembro de 2020, a Megafauna representa no mínimo um ato de ousadia empresarial. Como foi abrir uma livraria em plena pandemia e como vocês têm driblado as dificuldades impostas pelo momento?

AM: É um momento de luto e há uma situação em que o meio cultural se vê especialmente fragilizado. Sabemos que não é uma ocasião para comemorações. Ao mesmo tempo, temos sentido uma recepção muito calorosa do público. Com o aumento do consumo on-line, acreditamos que muita gente está saudosa da livraria física, desse aspecto mais humano do contato com os livros. Conhecer um livreiro pelo nome e estabelecer com ele uma interlocução sempre foi valorizado pelos leitores e é um dos nossos objetivos na Megafauna.

Desde muito antes da inauguração da livraria, optamos por fortalecer nossa identidade institucional não só como livraria, como também um canal de conteúdo. Nossa programação nas redes começou no início de 2020 e seguiu ininterrupta desde o início da pandemia. Os próximos passos serão lançar nossa plataforma de comércio virtual e terminar de desenvolver dois podcasts que serão lançados ainda este ano.

VB&M: Qual é a proposta de curadoria da Megafauna? Que vozes literárias a livraria pretende alçar?

AM: Nós trabalhamos com processos muito colaborativos, envolvendo uma equipe com experiência nos meios editorial e literário, como a crítica literária Rita Palmeira, por exemplo, que atua como nossa curadora. A escolha dos livros partiu de uma pesquisa de catálogo que considerou mais de cem editoras e que levou em conta critérios como representatividade e bibliodiversidade, buscando incluir tanto os grandes grupos editoriais como os pequenos, mais focados em nichos.

Acreditamos que um dos diferenciais da Megafauna é a montagem desse acervo. A variedade de editoras contribui com o nosso desejo de transformar a livraria em um espaço de debate e reflexão. Isso também se reflete na forma como os livros estão expostos e na priorização de obras cuja relevância da edição predomina sobre seu apelo comercial.

VB&M: Considerando sua formação no mercado financeiro, o que o motivou a se aventurar como livreiro?

AM: Minhas sócias costumam dizer que eu fiquei escondido no mercado financeiro. Acho que elas têm razão. A literatura sempre esteve muito presente na minha família. Mesmo com pais engenheiros, fui incentivado a ler desde muito jovem e ter uma livraria sempre foi um sonho. Pensei em colocá-lo em prática sozinho, mas quando conheci a Fernanda Diamant, ela já estava avançada no projeto da Megafauna. Foi um convite irrecusável. Gosto de pensar que, assim como no mercado financeiro, sempre é preciso um pouco de sorte e de timing. Foi o que aconteceu.

VB&M: De uma perspectiva macro empresarial, qual a sua leitura do mercado editorial brasileiro atualmente?

AM: Vejo o mercado editorial brasileiro extremamente diverso. Além das grande editoras e grupos editoriais, a gente segue vendo o nascimento de casas menores, voltadas a catálogos mais específicos. Do ponto de vista de quem acompanha esse mercado a partir de uma livraria, observo uma atenção enorme à representatividade, seja racial, de gênero, de editoras ou de nichos especializados.

As estatísticas do mercado em si não são uniformes. Houve um aumento das vendas on-line devido à pandemia e será necessária uma adaptação do mercado como um todo a essa nova realidade. Ao mesmo tempo, dentro do nosso projeto, acredito que a livraria física é insubstituível e que há uma demanda reprimida para um local de encontro como a Megafauna. Estamos otimistas apesar de tudo.

VB&M: Quais as leituras mais impactantes que você fez recentemente? Que livros você indica ao leitor brasileiro?

AM: Destaco duas. Tornar-se Palestina, da Lina Meruane (Relicário); e Vista Chinesa, da Tatiana Salem Levy (Todavia). O primeiro por mostrar um olhar bastante diferente do que estamos acostumados por aqui. Há uma reflexão prática e com certo distanciamento sobre a situação e o histórico da Palestina. Mas há também um olhar bastante íntimo, do lugar de uma descendente direta de refugiados. O segundo, Vista Chinesa, porque é brutal. A autora consegue imprimir uma narrativa sem rodeios, com cenas fortíssimas. Achei muito interessante a maneira com que a cidade do Rio de Janeiro foi retratada, a expectativa enorme seguida de uma decadência vertiginosa. A Tatiana foi capaz de amarrar tudo muito bem. Recomendo muito.