Marcela Dantés, que temos o prazer de anunciar como mais nova autora da VB&M, é um nome a se gravar. Aos 36 anos, ela tem três livros publicados, dois romances e um volume de contos, e indicações a importantes prêmios como o Jabuti e o Oceanos. Seu segundo e último romance, JOÃO MARIA MATILDE, publicado pela Contemporânea/Autêntica em maio deste ano, narra a história de uma jovem que, depois de um telefonema dizendo que seu pai desconhecido lhe deixara uma herança, vai em busca das próprias origens e acaba mergulhando em suas mais profundas sombras. O livro vem recebendo entusiasmados e merecidos elogios.
Nesta coluna Narrativas, Marcela compartilha um trecho de seu próximo romance, ainda inédito e provisoriamente intitulado VAZIOS, em que quatro vozes narram quatro histórias de vida que se cruzam e são perpassadas pelas várias faces da loucura. O trecho, retirado do meio do livro, dá uma palinha da beleza e da força da escrita de Marcela, e da dimensão que ela dá a seus personagens. De dar água na boca de qualquer leitor.
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VAZIOS (título provisório)
Fogo é danação. É um preto velho com um cachimbo imenso soprando fumaça e a língua de lava lambendo a cara de todo mundo que dorme ou que não olha para o lado certo. Num incêndio tudo morre, morre rápido e dói profundo, eu sei porque eu morri.
Ninguém sabe como começou, isso também é coisa que o fogo faz, Xangô de saia vermelha cuspindo chama pela boca, ele não quer morrer mas alguém vai. O vento ventava escorrendo pelas frestas da nossa casa, assoviando na janela do meu quarto, elas dormiam e eu também, mas no fundo da minha cabeça, além do barulho, tinha um incômodo esquisito que ficava entrando no sonho, se esgueirando na cama, dizendo é hoje que vai tudo se acabar. E eu dormindo.
O vento e o fogo deus que me livre de se encontrarem, mas foi exatamente isso que aconteceu, os dois entraram juntos-ferozes cantando onde a gente morava e entraram na minha cabeça e me fizeram correr louco ventando, soprando, uivando para o lado de fora, eu fui sozinho, eu fui embora, e elas lá, as lambidas do fogo nas caras mais lindas que já pisaram nessa terra, as duas minhas, muito minhas, e você deve estar pensando que eu fui pedir ajuda, que eu gritei socorro, mas não, eu corri as minhas pernas dali e eu nunca mais voltei.
Os pés de quem sai de uma casa pegando fogo são os pés do fim do mundo, as bolhas que crescem molhadas e amarelas e ficam pretas e se soltam levando com elas a pele inteira da sola dos pés. E quem corre em carne viva fica louco, mas se você já era ou já estava louco antes disso você só corre, deixando os pedaços de corpo pelo caminho, mas o que é isso perto de tudo que já tinha ficado para trás? As caras lindas e minhas na casa tomada por Xangô. E eu corri o meu corpo inteiro e não voltei nenhuma vez e não gritei nenhuma vez e só fui parar quando cheguei nas Capivaras e isso são dois dias de longe. Minha cabeça era toda o maldito, o Vento Vazio, e o meu corpo era nada, eu morri e uma manhã qualquer eu acordei na cama da casa de Zélia, e as pomadas todas e umas faixas brancas e eu morri naquele dia e depois nunca mais, embora siga rezando e pedindo.