Por Mirian Goldenberg
Desde o início da pandemia, estou em pânico com as notícias do Brasil e do mundo, sem conseguir dormir e chorando sem parar. Meu maior medo tem sido: “O que vai acontecer com os meus amigos nonagenários? Como eles irão sobreviver física e emocionalmente?”
No dia 15 de março, às seis da tarde, como acontece todos os dias, meu melhor amigo José Guedes, de 97 anos, me ligou. Só que desta vez ele não estava alegre e animado como sempre. Ele me disse desesperado: “Mirian, só vejo caixão na Itália. Os filhos não estão podendo se despedir dos pais. Como vai ser aqui no Brasil?”
Mirian Goldenberg e José Guedes. Foto: Reprodução.
Fiquei tão angustiada que respondi: “Guedes, para de ver televisão. Você não vai poder fazer nada por quem está morrendo na Itália. Não vai poder fazer nada por quem vai morrer no Brasil. Mas você pode fazer muito por mim, você pode cuidar de mim. Eu não vou conseguir sobreviver se você não cuidar de mim”.
Na mesma hora ele mudou de atitude e disse: “Deixa comigo”. E, para minha surpresa, recitou de memória três versos de “Os Lusíadas”, de Camões. E deu a sua risada gostosa que enche o meu coração de alegria.
Foi neste exato momento que a minha vida mudou radicalmente. Descobri que a única saída para ter o mínimo de equilíbrio e de saúde mental seria dedicar todo o meu tempo, energia e criatividade para cuidar das pessoas que eu mais amo.
Desde então, o Guedes me liga todos os dias para fazer um joguinho de palavras que eu inventei e para recitar os versos de “Os Lusíadas”. No dia 15 de maio, dia do seu aniversário de 97 anos, eu cantei para ele: “Amigo é coisa pra se guardar, do lado esquerdo do peito, mesmo que o tempo e a distância” Eu disse: “Guedes, você é o meu amigo mais querido. Amo muito você. Você é muito importante para mim”.
Ele disse emocionado: “Eu sei disso”. Quando ele disse: “Eu sei disso”, senti um amor tão profundo que percebi que a minha vida pode ter algum significado neste momento tão dramático.
Também, todos os dias, a minha doce e querida amiga Thaís, de 95 anos, me liga. Ela foi a minha melhor aluna na Casa do Saber. Fazemos um joguinho de palavras, ela me conta o almoço que o filho preparou especialmente para ela e outras histórias deliciosas sobre os nove filhos, 18 netos e 6 bisnetos. No final, ela lê um dos pensamentos que anotou no seu caderninho. O de ontem foi de Clarice Lispector: “Não se preocupe em entender. Viver ultrapassa todo entendimento. Mergulhe no que você não conhece”.
A Nalva, de 92 anos, me liga lá de Natal para tocar no piano as músicas que eu mais gosto: valsas, boleros, tangos, chorinhos, bossa nova, todas sem partitura.
O verbo que mais conjugo com os meus amigos é compartilhar: nós cantamos juntos, recitamos poesias, lemos livros, ouvimos música, jogamos caça palavras, conversamos sobre o nosso dia e, principalmente, damos muitas risadas gostosas.
Desde março de 2015 eu só convivo com os meus amigos nonagenários, todos muito alegres, saudáveis e cheios de projetos de vida. Hoje, já são mais de 50. Eles me apelidaram de “escutadora dos velhinhos”, pois amo ouvir suas histórias de vida. Com eles, aprendi que o tempo é o meu bem mais precioso, que preciso saborear um dia de cada vez e ter gratidão por estar viva e com saúde. Eles me ensinaram que a melhor rima para felicidade é amizade.
Por isso, eu passei a dizer que eu tenho 93 anos. Eu me tornei “nativa”, como dizem os antropólogos. Sabe aquela musiquinha: “Não confie em ninguém com mais de 30 anos”. Eu gosto de cantar: “Não confio em ninguém com menos de 90 anos”.
Nunca senti – nem recebi – tanto amor em toda a minha vida. Sinto uma profunda gratidão por ter amigos que me dão força, alegria e coragem para levantar da cama todos os dias. Eles estão me curando do pânico, do desespero e da depressão.
Ter um projeto de vida tem sido fundamental para a minha sobrevivência física e emocional. Aprendi que, apesar da situação assustadora, eu tenho a liberdade de escolher a atitude que posso ter frente ao sofrimento inevitável. Estou conseguindo ocupar o meu tempo de forma útil, produtiva e significativa: escutando, conversando, amando e cuidando dos meus amigos. E, mais do que nunca, combatendo a velhofobia no Brasil.
A pandemia revelou a face mais perversa de alguns políticos, empresários e autoridades: é o que eu chamo de velhofobia. Estamos assistindo horrorizados discursos recheados de estigmas, preconceitos e violências contra os mais velhos, como estes:“Vamos todos nos contaminar para criar imunidade e esta epidemia acabar logo. Só irão morrer alguns velhinhos doentes” “Não vamos parar a economia para salvar a vida de velhinhos, eles iriam morrer mesmo, mais cedo ou mais tarde”.
Este tipo de discurso revela uma situação que já existia antes da pandemia: os mais velhos são considerados inúteis, descartáveis e invisíveis. Homens e mulheres de mais idade, que já experimentam uma espécie de morte simbólica, estão desesperados ao constatar que são considerados um peso para a sociedade.
Você sabia que a maior parte da violência contra os velhos ocorre dentro de casa? E que os principais agressores são os filhos e os netos? Violência física, verbal, psicológica, abuso financeiro, negligência, maus tratos, xingamentos fazem parte da vida dos velhos bem antes da pandemia. Existe um cruel feminicídio e infanticídio dentro das casas. Mas não está acontecendo também um “velhocídio”?
Muitos dos que disseminam o discurso de ódio e de extermínio dos mais velhos já passaram dos 60 anos. É urgente que eles aprendam uma lição importante: a única categoria social que une todo mundo é ser velho. A criança e o jovem de hoje serão os velhos de amanhã. Os velhofóbicos estão construindo o seu próprio destino como velhos, e também o destino dos seus filhos e netos: que serão os velhos de amanhã.
A forte reação dos brasileiros contra estes sociopatas genocidas prova que os mais velhos são muito importantes para todos nós. Faremos tudo o que for necessário para demonstrar que os nossos velhos não são um peso, muito pelo contrário. São eles que estão nos ajudando a encontrar força e coragem para sobreviver física e mentalmente. São eles que estão nos ensinando a ser pessoas mais amorosas e generosas. São eles que estão cuidando de nós, como fizeram durante toda a vida.
Somos nós os principais interessados em uma transformação radical dessa realidade, seja qual for a nossa idade. Cada um de nós, mesmo os mais jovens, deveria se reconhecer no velho que é hoje ou no velho que será amanhã: velho não é o outro, velho sou eu.
Termino então com uma pergunta para todos vocês, os velhos de hoje e os velhos de amanhã: O que você está fazendo para combater a velhofobia? Você está escutando, amando e cuidando dos seus velhos?
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Mirian Goldenberg é antropóloga e autora de LIBERDADE, FELICIDADE E FODA-SE e A INVENÇÃO DE UMA BELA VELHICE.