A HISTÓRIA DE DOMINGOS

O blog VB&M encerra 2020 com o conto “Lágrimas na vidraça”, de Domingos Pellegrini, autor de MULHERES ESMERALDAS (Gutenberg). Publicado originalmente no início da pandemia como parte do programa podcast da  Storytel “Vai ficar tudo bem”,  esse belíssimo conto de Domingos narra a vida de um homem desde a infância de leitor voraz até o momento em que, já velho, ele atravessa a pandemia. É com essa Narrativa emocionante que fazemos nossos melhores e mais sinceros votos de um Natal tranquilo, seguro, de muito amor, e de saúde e paz em 2021 para todos que seguem o blog e as mídias sociais da agência. Muito obrigado!

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Lágrimas na vidraça

Domingos Pellegrini

A casa escorre lágrimas na vidraça. Alguém já não terá escrito isso? E porque escrever isso quem não mais vê lágrimas na vidraça?

Certo é que no frio o menino desenhava com o dedo na vidraça embaçada. Uma tempestade ficou vendo os raios enquanto a chuva escorria na vidraça e o pai e a mãe gritavam.

Um dos vidros da vidraça rachou porque a mãe jogou no pai alguma coisa, o menino não soube o que porque foi para o quarto quando eles começaram a gritar mais alto que os trovões.

Era a primeira visita do pai depois da mãe separada, como se dizia, depois diriam desquitada e o menino levaria essa palavra no peito por toda a vida.

O pai voltaria sempre com presentes e sempre a visita viraria gritaria, a mãe jogaria o que tinha à mão e o menino saía com a bicicleta.

Subiu numa velha pedreira e, lá a meia altura não conseguia mais subir mais nem também descer, porque anoiteceu e nem se via mais a bicicleta lá embaixo. Mas a lua saiu e conseguiu descer, chegou em casa bem mais crescido, a mãe nem percebeu porque chorava na cama e o pai já tinha ido embora.

E ele estava no cinema numa tarde de sábado, quando o lanterninha passou repetindo seu nome. Alguém avisara em casa que ele devia ir logo ao colégio, para a entrega dos prêmios do concurso de redação.

Tinham avisado em todas as classes na sexta-feira, quando ele gripado faltara às aulas. Agora chegaria ao colégio meio correndo e, quando entrou no salão nobre lotado, a diretora falava seu nome chamando para receber prêmio e aplausos.

Entregues todos os prêmios aos vencedores de todas as séries, ela anunciou a redação vencedora entre todas – e ele ouviu novamente seu nome, para receber como prêmio a biografia Pelos Caminhos de Minha Vida, do escritor escocês J. Cronin.

O rapazola leitor de bibliotecas tinha lido O Século dos Cirurgiões e achava que heróis mesmo, nos filmes de guerra, eram os médicos e os enfermeiros. E, lendo que Cronin foi médico até se aposentar para só então se tornar escritor, lhe pareceu sinal de vir a ser médico.

Mas também tinha lido a Bíblia, depois do pai e da mãe voltarem a viver juntos para se infernizar na mesma casa, embora agora ele e a irmã tivessem quarto próprio, para onde ele podia fugir lendo.

Leu tardes inteiras e até noite alta antes ainda de existir tevê, leu de decorar trechos do Gênesis, do Apocalipse e do Novo Testamento, e ouviu o pai perguntar à mãe se achava que ele ia ser padre.

Ele se encafifava mesmo com o Além e, quando a mãe proibiu luz no quarto depois da meia-noite, saía pela janela para ler à luz do poste na sarjeta, olhando as estrelas, o Infinito e a Eternidade.

Mas lá a páginas tantas Cronin contou que, também rapazola, tinha atinado que o Infinito só pode ser infinito pois, se acabasse nalgum ponto, que poderia haver depois, nada? Mas como nada pode existir antes ou depois de tudo?

Assim também com a Eternidade: para existir tempo, só pode o tempo ter sempre existido, senão como poderia passar a existir sem tempo para começar? E ali o rapazola viu que, se não médico porque nem conseguia fisgar minhoca em anzol, poderia ser escritor, pois se gostava tanto de ler histórias porque não também criar histórias?

Começou a escrever contos que começaram a ganhar prêmios e os pais se orgulhavam tanto dele quanto continuavam no suplício conjugal. Porém em vez de fugir para o quarto e os livros, ele fugiu para o casamento para repetir a história dos pais, só que com três filhos em vez de dois.

Descasou, divorciou porque afinal existia divórcio, foi morar na cidade-grande onde todos diziam que teria mais horizonte, que ele logo viu que era o que não tinha. Voltou a morar agora sozinho na cidade natal e, para mais repetência, na mesma rua onde nasceu.

Evitava visitar a mãe porque todo dia recebia visita do pai lamuriando do inferno em vida com ela. Vem morar comigo, pai, ele dizia mas o pai, batendo cigarro no isqueiro, dizia ah, aí quem sabe o que sua mãe é capaz de fazer.

Daí ele teve um segundo casamento, com mais uma filha, numa chácara onde conheceu a lua e se apaixonou pelo poente.

O pai continuava reclamando do inferno doméstico com a mãe, que uma noite ligou dizendo teu pai foi pro hospital de táxi. Ele chegou lá quando o pai respondia ao médico que não era fumante, só tinha fumado dos dez aos oitenta mas parando há mais de ano, então não podia estar ali devido ao fumo, não?

Sim, disse o médico, devido a todo o tempo anterior de fumante, e o pai de pronto: ah, se eu soubesse disso não tinha parado de fumar…

Metade do corpo do pai paralisou, mas não parou de fazer palavras cruzadas nem de reclamar da mãe, o filho insistindo: vem, pai, morar comigo, e o pai respondia engolindo silêncio de martírio.

Iam almoçar fora o pai, o filho e seus filhos, o avô feliz com os netos mas sempre aproveitando para, como sempre, afinal se dizer no inferno em casa. Até que o filho cinquentão se encheu e estourou: não ia mais sofrer aquilo, daí falando adeus, pai, vai viver teu inferno e me deixe em paz.

E foi viver se pensando em paz, até o pai voltar ao hospital para morrer. Aí ele se viu arrancando mato na chácara a pensar se devia ter brigado com o pai por causa da mãe, culpando a ferinidade dela, lastimando a cordeirice dele, e enquanto isso descasou de novo.

Então se encasulou na chácara, achando que nunca mais diria “minha mulher” na vida, mas ela apareceu e casaram sem ele convidar a mãe, em quem porém continuou a pensar e repensar sempre que arrancava mato.

A mulher dizia vai, vai procurar tua mãe, pois por mais dominadora que tenha sido, agora velhinha decerto não tem mais nem como controlar a vida de ninguém, então perdoa até para te fazer bem.

Ele foi visitar a mãe e viu que realmente estava tão velhinha e entretanto tão voltando a ser menina que precisava usar fralda.

Levou a mãe para morar com eles e, um dia, se viu arrancando mato a cantarolar.

Quando, depois de viciar o cachorro em bolacha, a mãe se foi, ele enterrou junto do pai e, com carinho, escreveu quadrinhas para cada um no jazigo da família.

E só então, depois de já ter netos e uma doença crônica, e depois de chorar lágrimas de renascimento, diante da foto de casamento do pai com seu olhar de paz e a mãe com seu olhar de fogo, só então deixou de ver lágrimas nas vidraças.

Assim, mesmo confinado em casa por uma peste mundial, olhando os raios lá fora, ele confia que, tirante Deus e portanto os acasos e imprevistos, as pestes e os desastres, as doenças e as desgraças, as separações que castigam gerações, os filhos que se foram de casa e da cidade como um dia ele se foi, e tudo mais que de aparentemente ruim sempre vem, confia que sempre afinal vai ficar tudo bem.