INTERPRETANDO O BRASIL

Um trecho de O INTÉRPRETE DE BORBOLETAS, novo romance ainda inédito do sociólogo e multifacetado escritor Sérgio Abranches, encerra a semana do blog VB&M. Por meio das confissões íntimas dos personagens, um grupo de amigos da Vila Madalena, em São Paulo, a radical narrativa de Sérgio, urbana e contemporânea, explora os efeitos das agressões e ataques digitais e reais sobre quem vive numa sociedade permeada por ódios políticos, racismo, homofobia e fanatismo religioso. Recentemente, Sergio publicou pela Companhia das Letras o ensaio O TEMPO DOS GOVERNANTES INCIDENTAIS, em que analisa a ascensão da extrema-direita no Brasil e no mundo.

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Sergio Abranches

Eduardo olhou para Paulo com uma mistura impossível de sentimentos. Amor e repulsa. Desgosto e saudade. O irmão estava como louco. Berrava palavras ofensivas como se manejasse uma automática. Elas formavam um conjunto sem sentido, frases atiradas em sucessão, como metralha. Os olhos injetados. A razão apagada. Ele atacava enraivecido, não apenas o irmão, mas todas as pessoas que não cabiam na estreiteza da sua concepção de mundo. Eduardo, enfurecido com as agressões verbais, replicava no mesmo tom. Um não via razão no outro. Quem visse os dois de fora da briga, como Rita, a irmã mais velha, acharia que nenhum deles fazia mais sentido.

— Quer saber, Paulo? Vai se foder! Estou de saco cheio! Não falo mais com você. Pelo menos até que volte a pensar. Se um dia voltar à razão. Você não pensa, vomita ofensas!

— Diz o anarquista que só quer fazer merda no mundo! Acho ótimo não nos falarmos mais. Você está precisando é de tomar umas porradas de verdade numa dessas desordens de rua que você adora.

— Vá à merda. E se acha que preciso de porrada, vem dar…

Rita ficou entre os dois, tentando evitar as agressões físicas. Não conseguiu parar o murro que Paulo acertou na orelha de Dudu, nem o chute de revide que atingiu a virilha de Paulo. Os irmãos bufavam como animais e se olhavam com raiva. Nenhum dos dois saberia dizer por que a briga começou. Uma frase distraída. Uma alusão. Alguma ideia que o outro achou fora do lugar. Nesses tempos de cólera, bastava uma palavra, um olhar, para detonar uma explosão de ofensas e contraofensas. As divisões eram irremediáveis. Só usavam a linguagem do ódio. (…)

Eduardo resolveu caminhar até a estação do metrô para se acalmar. Havia combinado de se encontrar com Carla depois do almoço. (…)

Tinha esperança de que fosse um surto. Um dia ele se curaria desse ódio. Paulo não era tão radical até alguns meses atrás. Sempre foi conservador, eleitor da centro-direita. Sempre encontrava justificativas para a ditadura. De repente, virou um reacionário de ultradireita extremado, violento. O ressentimento e a frustração de suas grandes ambições amargaram sua vida a ponto de explodir nessa loucura extremista. Antes, não era tosco desse jeito, aferrado a preconceitos tão evidentes. Ficou irreconhecível. Não dava mais para tentar argumentar com ele. Nós estávamos em campos tão opostos que não havia mais o que dizer. Iria mesmo acabar em porrada. Deixei a casa de Rita coberto de suor, raiva e um pontinho de culpa. Não por ter brigado com Paulo, briga entre nós sempre foi o normal. Um pouco, por termos chegado à agressão física. Muito, por causa de minha sobrinha, que nada tinha a ver com as mentes perturbadas por emoções políticas extremadas. Bella é uma ótima menina. Não puxou o temperamento dos pais. Ela tem a inteligência calma de minha mãe. Tem o cuidado no trato, que puxou de sua tia Rita. Sofre demais com nossas brigas. Temos uma relação muito amorosa e não quero perdê-la. Há muito eu achava que Káthia, minha cunhada, era uma víbora com veneno ultradireitista nas glândulas. Uma Walkiria enlouquecida. Parecia aquelas louras nazistas de cinema. Eles se mereciam. (…) Eles haviam se tornado extremistas raivosos. Rita concordava mais comigo, mas não em tudo, e nunca entrava em nossas discussões. Só tentava nos acalmar. Ela quase não falava nessas horas. Olhava melancólica e aflita a família se dispersar e não encontrava lugar neste mundo de ódios trocados. (…)

Paulo saiu do confronto com as têmporas pulsando de tanta raiva. Entrou no SUV e acelerou, sem perceber o carro que passava e foi forçado a frear bruscamente por sua saída impetuosa. Só se deu conta quando o outro buzinou nervosamente. Também não viu o garoto de moletom camuflado, ao virar na primeira esquina para tomar o rumo de casa. Só o percebeu quando ele teve que saltar para a calçada para não ser atropelado pelo jipão em disparada.

Já não bastava meu inferno particular. Rita achava que eu me sentia traído, tinha um ressentimento, uma raiva. Mas o fato é que o país sempre esteve muito aquém dos meus sonhos e desejos e eu tenho sido prejudicado por isso. Sempre cheio de incompetentes protegidos por afinidades ideológicas. Não é por falha minha. É esse sistema, essa engrenagem de favores. Sou forçado a aturar juízes populistas e incompetentes, advogados desqualificados. E a corrupção? Corre nos corredores dos tribunais como um rio de lama invisível. Só encontro algum alívio na academia, nos treinos com a rapaziada. A gente se entende. Káthia sempre concordou comigo. Eduardo diz que vejo tudo com preconceito e que eu não tenho inteligência emocional para entender quem não cabe no meu modelo de pessoa de bem. Eu tenho que ficar possesso com meu irmão. Ele não tem ambições. Quem é ele para me dizer que sou preconceituoso? As pessoas são diferentes sim. Umas são melhores do que as outras sim. Umas são superiores e outras são inferiores. As coisas só funcionam bem com hierarquia, disciplina e mérito. Nunca com esse igualitarismo comunista que pune os melhores e protege os incapazes. Rita não diz, mas está do lado dele. É um erro. Meu irmão é um desperdício. É inteligente, teve boa formação graças aos esforços de nossos pais. Eduardo podia estar bem de vida, dirigindo uma empresa, ganhando dinheiro. Mas preferiu viver uma vida louca, desorganizada. Um vagabundo. Um inconsequente com ideias esquerdistas. Podia casar, ter filhos, uma família, mas escolheu a vida de boêmio, de mulher em mulher, sem pouso e sem sossego. (…) Nos vemos o mínimo necessário e, a cada dia, nossos encontros dão mais errado. Agora deu no que deu. Acabou. Ele e o Afonso, amigos inseparáveis desde nossa infância, se merecem. Não entendo é como Isaura se casou com ele, outro anarco-comunista. Era óbvio que acabaria em separação, em dissolução da família. São dois doutrinadores, envenenam as cabeças das pessoas, até das crianças. Imagina deixar minha filha estudar com Afonso. Por isso Maria é tão revoltada. Fico arrepiado de medo quando ela se encontra com Annabella. Elas se gostam, ou se gostavam. Ainda bem que Káthia conseguiu convencer nossa filha a se afastar dela. Estremeço quando vejo Eduardo com Annabella. Ele sabe seduzir as mulheres. Podia envenenar a cabeça de minha filha. Entortou a de Carla. Ela foi a namorada mais razoável que ele arrumou em muito tempo. Moça rica, educada. Do pouco que conheço dela, me pareceu uma escolha certa, o que é surpreendente em Eduardo. Mas ele meteu umas ideias esquerdistas na cabeça dela. Ela está ficando igualzinha a eles. (…) Precisamos construir uma sociedade saudável, forte, com valores claros e bons. Chamam de censura a criteriosa seleção do que é bom para descartar as ideias nocivas. Devemos filtrar as ideias, como filtramos água, para evitar infecções. Eu chamo isso de educação moral e cívica. Não entendo como meu irmão não aprendeu a lição com nossos pais. Eles sofreram tanto pelos erros que cometeram na juventude. Quase morreram por eles. Não vê o quanto os desvios custaram a nossos pais e a nós. Está a repetí-los. Os dois tiveram que trabalhar até morrer, nunca puderam se aposentar. Eduardo virou um vagabundo que acha que escrever umas crônicas diárias é trabalho. Sou um homem de bem. Tenho noção de justiça. Construi minha vida com os valores das pessoas de bem. Em tudo há o bem e o mal. O mal precisa ser combatido em toda parte, com justiça, mas com firmeza, sem piedade. (…)