O FEMINISMO SUTIL E A NARRATIVA PODEROSA DE ANGÉLICA LOPES

A MALDIÇÃO DAS FLORES – primeiro romance adulto da escritora, jornalista e roteirista da TV-Globo Angélica Lopes –mal foi apresentado ao mercado editorial e já está vendido para a Planeta em “preempt” – jargão do meio para uma oferta que tira o livro da mesa de negociações. Graças à ágil percepção do significado do livro e à leitura competente do editor Mateus Erthal, o romance de Angélica chegará às livrarias no primeiro semestre de 2022. Parece sinal de um tempo em que o leitor está alertando de todas as maneiras aos editores que tem muita vontade de ler literatura brasileira – desde que seja excelente. É o caso do romance de Angélica, narrativa de força notável e excepcional originalidade que une o Brasil de hoje àquele outro país de 100 anos atrás por meio da história de um grupo de rendeiras pernambucanas. Angélica Conversa Com (A)Gente sobre o romance, que chegará às livrarias e aos leitores no primeiro semestre de 22, sua carreira, suas inspirações e referências literárias. Fala sobre as diferenças entre escrever para a tela e para o papel e reflete sobre a presença sutil mas bastante clara do feminismo em sua obra, que surge simbolizado pelo código secreto na renda tecida pelas protagonistas, que usam lençóis e toalhas de mesa rendados para arquitetar um plano de fuga de um casamento forçado. “Num certo sentido, nós, mulheres, também carregamos uma espécie de maldição social, uma vez que nascemos inseridas num sistema de opressão.”

VB&M: Sua obra, tanto juvenil como adulta, traz para o leitor a força do universo feminino, das relações de afeto e solidariedade entre mulheres. Há uma vontade política de passar uma mensagem feminista, ou simplesmente você vê o tema como rico material literário?

AL: Não faço de forma pensada, tanto que meu último livro jovem, 74 Dias para o Fim, fala do drama de um garoto que sofre bullying na escola. Além disso, me dedico a criar personagens masculinos consistentes. Porém, por ser mulher, minha voz e minhas vivências foram moldadas por esse filtro e, naturalmente, acabo escolhendo temáticas femininas na maioria das vezes. Mas não é regra.

VB&M: Como surgiu a ideia de A MALDIÇÃO DAS FLORES?

AL: Geralmente, meu processo criativo parte de um tema sobre o qual me interessa falar. Cresci numa época, não tão distante assim, em que as mulheres eram consideradas rivais entre si. Frases como “fulana roubou meu namorado” e “mulher se arruma para as outras” eram normalizadas. Hoje, raciocínios como esses sequer passam pela mente da minha filha, por exemplo. Nos últimos dez anos, essa transformação na maneira de pensar ocorreu de forma incisiva, muito mais no imaginário feminino do que no masculino. Isso fica claro quando observamos a frequência com que palavras como “sororidade” e “empoderamento” passaram a ser usadas, além do surgimento de movimentos como #nenhumaamenos, #metoo e #nãoénão.

A ideia de falar dessa mudança, que remete à luta de gerações anteriores às nossas, se ajustou a uma antiga vontade de falar sobre a terra do meu avô, o interior de Pernambuco. Para nós, os netos cariocas, as histórias que ele nos contava sobre sua infância na região eram muito marcantes pelo contraste com a nossa realidade urbana. Entre essas histórias, a mais instigante era a lenda de que teríamos um antepassado amaldiçoado – mítica tão presente na minha família que fez com que meus irmãos e eu não fôssemos registrados com o mesmo sobrenome do meu avô.

Decidi unir essas duas ideias porque, num certo sentido, nós, mulheres, também carregamos uma espécie de maldição social, uma vez que nascemos inseridas num sistema de opressão. A escolha da renda como elemento central foi porque ela remete, ao mesmo tempo, ao Nordeste e ao simbólico feminino.

VB&M: Mas a trama tem fundo factual, histórico?

AL: A história se passa em dois tempos, com 100 anos de diferença aproximadamente, que considero dois momentos interessantes da luta feminista. As primeiras décadas do século XX foram marcadas pelo surgimento dos primeiros movimentos organizados de luta pelos direitos. Enquanto Bertha Lutz conduzia o movimento sufragista ao auge em 1920, longe das capitais, no interior de Pernambuco, iniciava-se uma era de grande violência com o surgimento do Cangaço, em 1918. Achei que essa dualidade entre o atraso e a vontade progressista, que coexistiam naquela época e ainda nos obscuros dias hoje, serviria bem ao romance.

É claro que o livro não se propõe a fazer um registro histórico, mas utilizei fatos e personagens reais para construir o contexto e a atmosfera da época. A ideia foi retratar esses dois períodos da luta feminina: entre 1910 e 1920, mais focada na conquista dos direitos civis, e nos dias atuais, com o anseio pela transformação das mentalidades.

VB&M: A MALDIÇÃO DAS FLORES é muito imagético. Originalmente, você, como roteirista, pensou a história como uma obra audiovisual ou desde o início visava a um romance?

AL: Sempre foi um romance, pois queria explorar nuances e temas que ficariam limitados no formato audiovisual. Comecei minha carreira escrevendo literatura, que considero ser minha forma mais natural de expressão. Por isso, meu trabalho autoral está nos meus livros, espaço íntimo onde estamos apenas eu e o leitor, sem intermediação.

Como roteirista, compartilho minha autoralidade com diversos profissionais, e o produto final é fruto de uma união de talentos. A troca é riquíssima, mas são chaves diferentes. Na verdade, quando comecei a escrever para TV e cinema, tive que me adaptar, aprender a pensar de forma espacial e a mostrar os sentimentos dos personagens através de ações. Foi um grande aprendizado e hoje passeio de forma confortável pelos dois formatos.

VB&M: Depois de tantos anos publicando ficção para jovens, como e por quê você decidiu escrever um romance voltado para o leitor adulto?

AL: Iniciei na literatura escrevendo para jovens, pois sempre me preocupei com o processo de formação de leitores. Como eu lia muito quando jovem_ passava tanto tempo no ônibus que consumi boa parte da literatura russa no trânsito_, sempre me incomodou observar jovens encarando a leitura como uma obrigação escolar a ser burlada. Por isso, no início de 2000, quando lancei meu primeiro livro, minha proposta foi justamente a de fisgar esse público e aproximá-lo da leitura. Queria abrir essa porta. Daí, meus primeiros livros terem um tom propositadamente bem-humorado e tratarem de temas do cotidiano juvenil, sem fantasia ou suspense, gêneros forte no setor. Na minha opinião, existia um esforço por parte dos pais e da escola para apresentar literatura aos pequenos, que ia diminuindo conforme esses leitores iam crescendo. Quis preencher esse espaço para ajudar esses adolescentes a se tornarem leitores adultos.

Além disso, a juventude é uma fase de grande intensidade emocional, em que tudo é maior, mais sofrido, o que ajuda na ficção. Na TV e no cinema, sempre escrevi para adultos e não havia por que não fazê-lo também na literatura. Além disso, pessoalmente, eu sentia falta de algumas explorações estilísticas que os mercados juvenil e audiovisual não me permitem.

VB&M: Quanto da Angélica roteirista está presente na ficcionista? É importante para você que A MALDIÇÃO DAS FLORES seja adaptado para audiovisual? Como imagina que será sua relação com essa história contada em outra mídia?

AL: Como escrevo para audiovisual há muitos anos, já desenvolvi a capacidade de enxergar potencial para adaptações. Não é uma obrigatoriedade nas minhas obras literárias, mas, por acaso, A MALDIÇÃO DAS FLORES daria um ótimo filme ou série, por se tratar de uma trama concentrada num recorte temporal específico, com uma curva dramática potente e, claro, ambientação e cenário que funcionariam muito bem na transposição para as telas.

VB&M: Entre a primeira submissão de A MALDIÇÃO DAS FLORES a um editor, a publicação de um trecho do romance no blog da agência e a venda dos direitos com lançamento marcado para o primeiro trimestre de 2022, foram menos de 20 dias. Como foi para você a experiência de ter o livro vendido em tão pouco tempo?

AL: Foi surpreendente mesmo, principalmente se formos pensar no volume de leitura que os editores precisam dar conta e nas agendas já fechadas com o planejamento das publicações. Sempre confiei no potencial da história, claro, mas acho que esse intervalo recorde entre o ponto final que digitei no meu arquivo e a data prevista para publicação aconteceu porque A MALDIÇÃO DAS FLORES é um tipo de narrativa que a sociedade quer ler. Histórias femininas, não apenas com protagonistas mulheres, mas com o feminino presente na maneira de contar, na forma como os personagens se relacionam com o mundo, são uma demanda dos leitores. A hegemônica Jornada do Herói tem dividido cada vez mais espaço com a Promessa da Virgem.

VB&M: Quais as suas principais referências literárias, que livros e autores mais a inspiram?

AL: São muitas. Gosto de dramas humanos e histórias baseadas em relações pessoais. Entre os clássicos, Balzac, Tólstoi, Eça de Queirós, Mary Ann Evans (ironicamente conhecida por seu pseudônimo masculino George Eliot, em homenagem ao marido). Entre os contemporâneos, para falar apenas de mulheres escritoras, posso citar Anne Tyler, Jhumpa Lahiri, Jennifer Egan, Inês Pedrosa, Chimamanda Ngozi Adichie. Autoras que criam suas histórias baseadas em dramas humanos, sempre explorando o meio cultural e a bagagem familiar de seus personagens.