CONTA COM O CHICO

Dando prosseguimento à publicação dos contos que compuseram o programa de podcasts da Storytel “Vai ficar tudo bem”, do início da pandemia,  a joia de otimismo e afeto de Francisco Azevedo, o querido Chico, “Conta comigo”, para encerrar com nota alta e fazer esquecer uma semana com tristes espetáculos de grosserias, baixezas, ódios e esforços de destruição no Brasil e nos EUA. “Conta comigo” é a Narrativa bem-humorada de uma velha, em solitária quarentena, que reflete sobre família e afetos, vida que passa e memórias que ficam. Esse é sempre o tom do Chico, que levanta qualquer espírito; veja-se sua tetralogia, uma saga familiar, iniciada com O ARROZ DE PALMA há 12 anos, 8 de novembro de 2008, e concluída com A ROUPA DO CORPO, romance que terá live para marcar seu lançamento dia 9 de dezembro, com o livreiro Marcos Gasparian e presença virtual da escritora Andrea Pachá, que escreveu um tocante texto de orelha para a edição da Record.

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CONTA COMIGO

Francisco Azevedo

Altamente contagioso, o vírus se espalha pelo mundo. Ignora exércitos postados em fronteiras, gigantescos muros de concreto, cercas de arame farpado, barreiras de imigração. Implacável, não poupa nenhum país, autoridade nenhuma, ninguém. Ainda assim, em luta desigual, vale tomar partido, vale resistir ao lado da vida, tentar se proteger. Se é para ficar em casa de quarentena, eu fico. Tenho 89 anos, saúde boa, mas faço parte do tal grupo de risco. Acho graça. Tantos riscos corri desde menina. Bem ou mal, sobrevivi a todos. Só que agora será mais difícil, terei de enfrentar a situação sozinha. Jonas, meu velho, me deixou faz poucos meses. “Me deixou” não é a expressão correta. Meu velhote jamais me deixaria. Foi questão de tempo. Sim, o tempo, esse senhor que também decide quando é o fim e o começo. E nosso começo, embora assustador, foi bonito demais, apaixonado demais. O fim? Igual ao de tantos casais idosos que se amam: um preocupado com o outro, com a saúde do outro, escondendo uma dor, disfarçando uma saudade, uma tristeza e o medo de perder alguém tão precioso – a gente chega perto, vê que é o cochilo da tarde e sente alívio e agradece aos Céus a outra parte de nós que ainda vive. No fim, bem no finzinho, este faz-de-conta é a maior prova de amor, porque importa é que o outro esteja bem.

Sem meu velho, ficar de quarentena em casa não será nada divertido, eu sei. Onde nossos bons dias, nossos cafés da manhã? Onde nossas conversas, nossas brincadeiras, nossas adolescências? Jonas, certamente, me diria que agora pelo menos não tenho mais com o que me preocupar, que se acabaram também os pequenos cuidados cotidianos: tomou o remédio? Está frio, vai sair assim sem um agasalho? Nublou, melhor levar um guarda-chuva. Presta atenção nos degraus e quando atravessar. Vê se não demora muito e, se lembrar, compra pó de café, que o nosso está no fim.

O fim – um dos nossos assuntos recorrentes. Utópicos por natureza, sempre apostamos em finais felizes, trazendo a realidade para o nosso lado e enfrentando com paciência a crescente distopia dos mais jovens. Descrentes do presente e assustadíssimos com o futuro, filhos e netos acreditam mesmo que o planeta já esteja com os dias contados. Chega a dar pena ouvi-los. Agora então, com a inoportuna visita desse vírus, parece impossível convencê-los de que, apesar dos tempos sombrios, o ser humano está vocacionado para a luz. Afinal, situações extremas existem para nos fortalecer e aprimorar. Discurso inútil, pois é. Filhos e netos. Também eles estão espalhados aí pelo mundo. Nos comunicamos com alguma frequência por câmeras no Whatsapp – permanente quarentena. Portanto, sem o menor risco de nos contaminarmos, costumo brincar. De uns dias para cá, com o vírus se alastrando, as chamadas se intensificaram, querem saber se estou bem, se não me falta nada. Tento tranquilizá-los, nada a reclamar, só a agradecer, meus queridos – uma pitadinha daquele jogo de faz-de-conta, é claro, porque o importante é que eles, tão desiludidos de tudo e de todos, sintam-se bem ao conversar comigo, e ganhem ânimo.

A verdade é que a vida ora afaga, ora bate forte. É lei, todos sabemos. Arrancar desilusão do peito sem anestesia nunca me intimidou, pior se fosse um dente. Aí, sim, eu relutaria em abrir a boca. Agora, desilusão? Me poupe. Numa puxada firme, arranco ela fora. Quem me causou mal que tome caminho, adeus, seja feliz. Quando conheci o Jonas, eu tinha 20 anos, a mesma idade que ele. Foi paixão imediata. No que eu abri a porta da casa de meus pais e o vi à queima roupa, meu coração disparou incontido, gaguejei, sorri. Você é o carpinteiro? Lógico, pergunta boba, o macacão com o nome da madeireira, a maleta pesada na mão, o tipo que traz estampado no rosto ser trabalhador de confiança. Ele sorriu, quis me encabular. O que é que você acha? Acho muito bonito e simpático, respondi de pronto. E aí foi ele que não soube o que dizer. Ficamos alguns segundos calados, com a certeza de que, a partir daquele momento, seguiríamos juntos por onde fosse.

Três meses de encontros escondidos, sustos, segredos, até o revolucionário 6 de abril de 1951 – o dia da coragem, do anúncio: Jonas e eu vamos nos casar. Meu tonitruante pai não quis saber, me amaldiçoou, jurou me deserdar. Suas razões me envergonhavam: Filha única, viajada, nível superior, família tradicional, cair de amores por um negro zé ninguém, interessado apenas em dar o golpe do baú. O mais triste foi a neutralidade, o subordinado silêncio de minha mãe. Parece clichê de folhetim, mas foi exatamente o que aconteceu. Da noite para o dia, o jovem carpinteiro, excelente profissional, querido e respeitado por todos, foi visto como um conquistador barato, só por querer se casar com a jovem branca de classe média alta – tempos insanos que me obrigaram a sair de casa e me puseram à distância, outra espécie de quarentena. O isolamento durou até o nascimento de meu primeiro filho. Foi papai que, emocionado, me procurou. Jonas e eu já acreditávamos em finais felizes.

Hoje, nesta cadeira de balanço – por causa de um vírus que também impede beijos e abraços – não me vejo de castigo. De jeito nenhum. Tenho livros, ouço música. E as lembranças do meu velho Jonas são filmes que sempre me alegram e distraem. Esta cadeira, por exemplo, fez história. Venho para ela sempre que preciso de aconchego e das boas palavras de meus santos, meus mortos, meus espíritos de luz. Fui professora universitária, mas sei que, às vésperas dos 90 anos, tenho muito mais a aprender que a ensinar. E há sempre algum desses amigos aqui por perto a me dar conselhos. O neto caçula, justo o meu xodó, já me questionou por estas “crendices”. E se for pura imaginação, avó? Se não houver nada além desta vida injusta e desigual? Pouco importa, Rafael. Terei vivido uma aventura fabulosa que eu mesma inventei, terei encontrado um sentido para o universo, suas incontáveis estrelas, e uma boa razão para amar. Mas voltemos a este balanço e a esta cadeira que é um dos bens mais preciosos que possuo, porque presente de Jonas durante minha primeira gravidez. E é este capítulo específico que me apraz recordar agora, nestes novos tempos de espera, paciência e expectativa.

Quatro anos de casados, a vida estável graças ao sonho realizado: a oficina de carpintaria, que compramos juntos e Jonas montou sozinho com esforço gigantesco – merecido sucesso. Trabalhar a madeira bruta, transformá-la em móveis e pequenos utensílios, o felicitava imensamente. A cada estante pronta, a cada mesa, a cada utensílio, ele exultava. Mas uma peça em especial ganhou vida em suas mãos: minha cadeira de balanço!

Final de gravidez. Eu, pesadíssima, pés inchados, quase sem poder me movimentar – péssimo humor pelo interminável confinamento. E ele me chega com a surpresa, seu jeito de ver o mundo, sua habitual alegria: Descobri que as coisas têm alma, meu Amor! Esta cadeira é a maior prova! Põe a mão no lado esquerdo do encosto: coração batendo forte, respiração acelerada! Sua cadeira de balanço está toda feliz porque sabe que não vai ser vendida, vai ficar aqui em casa! Não quer sentar no colo dela um pouquinho? Vem, eu te ajudo a sair da cama. Eu não queria só sair da cama, eu queria sair do quarto, de casa, daquele forçado recolhimento. Com algum sacrifício, apoiando-me nele, acabei por me acomodar “no colo” da cadeira. Jonas começou a me afagar os cabelos, a me balançar devagarinho. Algo extraordinário então aconteceu. Fechei os olhos e logo adormeci. Sonhei que o assento era colo de verdade, e a cadeira, uma velha senhora, que me embalava com cantigas de ninar. Acordei minutos depois com fortes contrações. Era hora de dar à luz o meu filho, hora de nos libertar, hora de celebrar a vida.

Parece que foi ontem, parece uma eternidade – assim é o balanço presente do tempo. Para trás e para frente… lembranças e projetos… para trás e para frente… desilusões e sonhos… para trás e para frente… E enquanto você espera, conta um caso engraçado, uma anedota. Conta uma história de amor, o tempo que falta para o mal ir embora. Mesmo à distância, sem beijo ou abraço, conta comigo. Sempre.